29/11/2006
- De autoria do deputado Mendes Thame, presidente
da CPI contra a Biopirataria, PL nº 4.961/05
amplia o escopo de patentes sobre moléculas
e substâncias naturais isoladas, inclusive
de origem humana, distorcendo o sistema de
propriedade intelectual e “loteando” o patrimônio
genético brasileiro em favor de corporações
privadas
Tramita atualmente na Câmara
dos Deputados uma iniciativa legislativa especialmente
perigosa para a pesquisa científica
e a soberania sobre a biodiversidade brasileira:
o Projeto de Lei n º 4.961/05, de autoria
do deputado Mendes Thame (PSDB-SP), que altera
a Lei de Propriedade Industrial – LPI (Lei
n º 9.279/96) para permitir o patenteamento
de substâncias ou materiais extraídos,
obtidos ou isolados de seres vivos.
O projeto, que atualmente
se encontra na Comissão de Meio Ambiente
e Desenvolvimento Sustentável recebeu
inicialmente parecer desfavorável do
relator, deputado Jorge Pinheiro (PL-DF).
Ele argumentou que o projeto dificultará
a pesquisa científica no país,
já que o acesso ao material genético
passaria a ser controlado pelo detentor da
patente, na maioria dos casos corporações
privadas estrangeiras. O parecer questiona
também a possibilidade de patenteamento
de descobertas em que não há
qualquer atividade inventiva do homem, distorcendo
assim o princípio básico do
sistema de patentes.
Em abril de 2006, no entanto,
parecer do deputado Hamilton Casara (PSDB-RO)
questionou o relator, apresentando posição
favorável ao projeto, sob o argumento
de sua importância para o desenvolvimento
da indústria biotecnológica
farmacêutica. Curiosamente, em 22 de
novembro último, novo parecer do relator
Jorge Pinheiro foi apresentado, dessa vez
favorável ao projeto. A mudança
no entendimento do relator, no entanto, é
contraditória com a própria
fundamentação de seu parecer,
onde simplesmente foi enxertada a fundamentação
do parecer favorável do Deputado Casara.
A contradição de fundamentos
em um mesmo parecer indica a pressão
exercida sobre o relator para mudar sua posição.
O PL nº 4.961/05 está sujeito
a apreciação conclusiva por
quatro comissões da Câmara, o
que significa que não precisa se sujeitar
a votação no Plenário
para sua aprovação.
O PL como ferramenta de
“bioespeculação” por corporações
transnacionais
O PL interessa apenas a
indústrias farmacêuticas transnacionais
que têm interesse em se apropriar de
moléculas e genes da biodiversidade
brasileira através do sistema de patentes,
regulado pela Lei de Propriedade Industrial,
que ora se pretende alterar. Assim fazendo,
poderá na prática impedir ou
cobrar pelo acesso ao material natural, dificultando
tanto o acesso para pesquisa e desenvolvimento
como para benefício da sociedade como
um todo, incluindo pequenos e grandes produtores
agrícolas, consumidores, comunidades
locais e indígenas, que dependem do
acesso a recursos naturais no país.
Em estudo feito pelo ISA
recentemente sobre o banco de patentes do
Instituto Nacional de Propriedade Industrial
– INPI, órgão do Ministério
do Desenvolvimento e Indústria responsável
pela gestão do sistema de patentes
no Brasil, quase dez por cento (10%) dos pedidos
amostrados recaem sobre genes ou moléculas
naturais, ainda que essa possibilidade seja
proibida pela atual LPI.
Esses pedidos depositados
nada mais são do que iniciativas especulativas
baseadas na expectativa do advento das mudanças
propostas precisamente neste PL. Uma vez concretizada
essa expectativa, aplicar-se-á a legislação
aos pedidos em trâmite, e tais pedidos
podem vir a ter prioridade para exame, representando
verdadeira reserva de mercado diante de uma
situação futura e incerta. Vale
lembrar que a maioria dos pedidos existentes
corresponde a patentes já existentes
detidas por corporações estrangeiras
em outros países. Uma vez aprovado
o PL, tais patentes passariam a valer internamente
no Brasil, ampliando o mercado dessas corporações,
ao invés de estimular o empresariado
nacional, como sugere o objetivo do PL. Trata-se
do loteamento prévio do material genético
brasileiro, aguardando a aprovação
deste PL.
O volume de pedidos dessa
natureza indica uma pressão surda sobre
o Legislativo para a aprovação
do PL, em detrimento da pesquisa científica
a quem o PL pretende beneficiar, na medida
em que instituições de pesquisa
serão obrigadas a pagar royalties para
se utilizarem do material genético
sobre o qual passaria a valer a patente e
do qual depende a pesquisa básica.
Um estudo do Centro Nacional
de Pesquisa das Academias Nacionais, nos EUA,
mostra que o sistema de patentes passou por
uma distorção tamanha que atualmente
patentes dessa natureza limitam o acesso público
a idéias e técnicas essenciais
para a pesquisa básica, representando
um impedimento à produção
científica e à inovação
tecnológica. Ou seja, no país
onde surgiu a possibilidade de patenteamento
de moléculas naturais, instituições
de pesquisa já denunciam seus efeitos
danosos sobre a política de ciência
e tecnologia.
Acordo TRIPS fundamenta
PL, mas é contrário aos interesses
nacionais
O acordo TRIPS (Tratado
sobre os Direitos de Propriedade Intelectual
relacionados ao Comércio) sobre propriedade
intelectual ligada ao comércio, adotado
na Organização Mundial de Comércio
– OMC, foi concebido em um contexto de liberalização
econômica em que regras iguais de comércio
foram impostas a países muito desiguais
econômica, social e ambientalmente.
Países desenvolvidos como EUA, Japão
e integrantes da União Européia
(UE) vêm pressionando há décadas
países em desenvolvimento, especialmente
aqueles que representam potenciais mercados
como Brasil, Índia, China, México,
a “harmonizar” suas legislações
nacionais a padrões internacionais
por eles impostos.
O mesmo aconteceu no campo
da propriedade intelectual. A antiga Lei nº
5.772/71, criticada pelo voto favorável
ao PL de autoria do deputado Hamilton Casara,
continha regras de propriedade industrial
concebidas a partir das prioridades e interesses
nacionais, e vedava a possibilidade de patenteamento
de remédios e processos de produção
de remédios. A medida visava garantir
preços acessíveis aos usuários
do sistema de saúde, beneficiando a
sociedade brasileira. Entretanto, a Lei de
Propriedade Industrial (LPI), que veio em
resposta à adesão do Brasil
ao TRIPS, passou a permitir o patenteamento
de medicamentos e processos de produção.
Resultado: medicamentos em mãos de
corporações transnacionais,
que se servem de recursos genéticos
brasileiros para o desenvolvimento de remédios
depois vendidos aqui a preços exorbitantes,
impedindo o acesso da população
à saúde.
Mais amplamente, a adoção
do TRIPS significa uma intervenção
na soberania legislativa de países
em desenvolvimento, que se vêem obrigados
a adotar leis desinteressantes e danosas a
seus povos, causando impactos como aumento
de pobreza, marginalização social
e concentração econômica
e corporativa. Os beneficiários dessa
concentração – as corporações
biotecnológicas, neste caso - são
aqueles que defendem a adoção,
aqui no Brasil, de “princípios legislativos
adotados em países industrializados”,
como defende o deputado Hamilton Casara, favorável
ao PL, pois é lá onde criam
as leis que lhes interessam.
O Brasil vem defendendo
justamente o contrário na OMC
A partir de uma decisão
da Suprema Corte norte-americana de 1980,
que reconheceu pela primeira vez uma patente
sobre um organismo vivo, a idéia de
reconhecer propriedade privada à vida
passou a ser adotada por países desenvolvidos
para estendê-la a genes, moléculas,
células, organismos inteiros, até
de origem humana. Para submeter a esse novo
entendimento o sistema de patentes, criado
para proteger invenções humanas
sobre máquinas e processos, foi preciso
criar a ficção jurídica
de que materiais biológicos existentes
na natureza podem ser considerados uma “invenção”,
desde que estejam sob uma forma “purificada”
ou “isolada”. É exatamente essa tese
que passou a ser admitida pelo acordo TRIPS
e que o PL pretende cristalizar, em detrimento
do interesse nacional.
No entanto, o TRIPS, como
qualquer resultado de árdua negociação,
deixou flexibilidades importantes a países
em desenvolvimento, salvaguardando parte de
suas soberanias legislativas. Países
podem optar por não permitir o patenteamento
de plantas e animais, assim como qualquer
substância ou material genético
em estado natural, considerando-os como mera
descoberta, sem passo inventivo ou inovação.
Essa foi a opção do Brasil,
em sua Lei de Propriedade Industrial, assim
como a opção de dezenas de outros
países em desenvolvimento, por entenderem
que é preciso impor limites à
possibilidade de privatização
de coisas que devem permanecer públicas,
em nome da saúde, meio ambiente, alimentação
e bem estar social de seus povos.
Em nível internacional,
o Brasil vem navegando em sentido contrário:
capitaneia um movimento, junto com o grupo
de países Megadiversos e o Grupo Africano,
pela flexibilização das regras
de patentes sobre medicamentos, com sucesso,
na própria OMC, e lidera a chamada
Agenda de Desenvolvimento na Organização
Mundial da Propriedade Intelectual – OMPI,
destinada a questionar as distorções
dos critérios de patenteabilidade dos
sistemas de patentes – incluindo precisamente
o critério proposto por este PL, que
considera a mera descoberta ou isolamento
de uma substância natural como invenção
passível de patenteamento.
Isolar moléculas
ou substâncias não as torna invenção
humana
O parecer favorável
ao PL, de autoria do Deputado Hamilton Casara,
argumenta que “se algo é descoberto,
terá sido descoberto na condição
em que se encontra; para vir a apresentar-se
ou ser isolado, houve alguma intervenção
humana na natureza, portanto, invenção”.
Uma analogia com o comportamento
da água pode ajudar a clarificar o
“jogo de palavras” que tenta justificar essa
tese. A água pode se alterar de seu
estado natural líquido para gasoso,
quando aquecida, ou para sólido, quando
resfriada. Tanto para aquecer como para resfriar
a água utilizamo-nos de intervenção
humana. Pode ser que essa intervenção
humana represente uma invenção,
um processo criativo novo e útil para
alterar o estado da água; isso estaria
sujeito a patentes. Mas podemos afirmar que
a água é natural quando líquida
e uma invenção quando gasosa
ou sólida, só porque se comporta
de forma diferente sob intervenção
humana?
O mesmo ocorre com as moléculas
e substâncias naturais: pode ser que
os métodos para isolá-las de
seu meio natural sejam patenteáveis,
por serem processos inventivos, mas admitir
que a própria molécula se torne
propriedade privada pelo simples fato de estar
em outra situação não
é possível. Desse simples raciocínio
evidencia-se que a tentativa de privatizar
seres vivos através de patentes foge
ao bom senso e atende aos interesses daqueles
que lucram às custas da biodiversidade
brasileira.
PL fere Constituição
ao permitir a privatização de
patrimônio de uso comum
A Constituição
Federal de 1988 adotou normas de vanguarda
para a proteção do patrimônio
ambiental brasileiro. Entre elas, definiu
o meio ambiente, incluindo também o
patrimônio genético brasileiro,
como bem de uso comum do povo, essencial à
sadia qualidade de vida, cuja titularidade
é difusa porque não pertence
a ninguém em especial, mas cada um
pode e deve promover sua defesa, que beneficia
a toda a coletividade (art. 225). Como pode
um PL permitir a privatização,
através de patentes, de componentes
do patrimônio genético brasileiro
cujo dever de proteção repousa
sobre a sociedade, o Estado e o Congresso
Nacional? Permitir o patenteamento de moléculas
naturais isoladas, como quer o PL, significa
permitir a privatização de bem
de uso comum do povo, o que é inadmissível.
ISA, Fernando Mathias.