06/12/2006
- Em artigo publicado no dia 6 de novembro,
quarta-feira, no jornal Folha de S. Paulo,
o coordenador da campanha ’Y Ikatu Xingu pelo
Instituto Socioambiental (ISA), Márcio
Santilli, analisa o acordo firmado entre a
Abiove (Associação Brasileira
das Indústrias de Óleos Vegetais),
o Greenpeace e grandes traders para uma "moratória"
na compra da soja oriunda de novos desmatamentos.
Santilli conclui que os importadores europeus
estão fazendo uma interpretação
perversa do pacto. Confira abaixo a íntegra
do texto.
Acordo entre Greenpeace,
Abiove e tradings para uma "moratória"
na compra da soja oriunda de novos desmatamentos
está sendo interpretado de maneira
perversa por importadores europeus, segregando
produtores sem estimular a melhoria da qualidade
socioambiental da produção.
Melhor seria compartilhar no interior da cadeia
produtiva os custos relativos à melhoria
da qualidade.
A produção
da soja tem suscitado acirrados debates. Em
se tratando de uma atividade altamente capitalizada,
pelo menos até o início da recente
crise, e que é destinada ao mercado
internacional, sob fortes demanda e concorrência,
ela tem sido alvo de pressões mais
agudas e freqüentes do que outras cadeias
produtivas.
Um foco importante de debate
se refere ao plantio de variedades transgênicas,
ainda mal resolvido. Outro viés da
polêmica diz respeito à qualidade
socioambiental do produto: se ele provém
de propriedades em que é respeitada
a legislação trabalhista e ambiental,
no que se refere à eventual ocorrência
do uso do trabalho infantil ou forçado
ou da supressão da cobertura vegetal
nativa.
Bem mais crítica
é a conexão com o desmatamento
na Amazônia, que alcançou índices
pornográficos em anos recentes, com
impactos negativos sobre a biodiversidade
e o clima. A maior parte do passivo ambiental
na Amazônia está concentrada
na pecuária, mas há regiões
em que ocorre a conversão de floresta
em plantações de soja, além
do impacto indireto que geram ao deslocar
outras atividades para áreas até
então florestadas. Nesse contexto,
movimentos ambientalistas e de produtores
alternaram críticas mútuas e
tentativas de negociações sobre
critérios de sustentabilidade da produção,
sobretudo em relação à
produção destinada ao mercado
europeu, onde são maiores as exigências
dos consumidores e o poder de pressão
dos ambientalistas.
Paralelamente, o Greenpeace
realizou um movimento de pressão sobre
os principais importadores europeus que resultou
no anúncio de uma "moratória"
na aquisição da soja que venha
a ser produzida em áreas de novos desmatamentos.
Como é difícil
saber ao certo se a produção
advém de áreas recentemente
desmatadas, os compradores europeus encontraram
uma maneira mais fácil de se esquivar
da pressão dos ambientalistas, deixando
de comprar a soja produzida ao norte da linha
divisória entre o cerrado e a floresta
amazônicos.
Assim, o resultado concreto
do acordo entre o Greenpeace e a Associação
Brasileira das Indústrias de Óleos
Vegetais está sendo perverso. Estabelece
uma linha burra, pois não há
nada que garanta que a soja comprada ao sul
esteja sendo produzida de acordo com as boas
práticas ambientais, e prejudica os
esforços daqueles que eventualmente
estejam produzindo de forma adequada ao norte
da divisória ou que pretendam melhorar
a qualidade da produção.
Se essa tendência
prevalecer, como ficarão os proprietários
baseados no bioma florestal? Deverão
abrir mão das boas práticas,
já que estarão excluídos
dos mercados mais qualitativos? Embarcarão
na onda das variedades transgênicas
ou mudarão para a pecuária ou
a cana-deaçúcar? De onde poderão
obter recursos necessários à
melhoria da qualidade da sua produção?
E, por outro lado, liberada de qualquer critério,
a produção de soja não
pressionará ainda mais o bioma do cerrado,
onde nascem as águas que formam a bacia
Amazônica?
A questão central
está no planejamento da propriedade,
e não na sua localização
geográfica. E, embora novos desmatamentos
sejam sempre indesejáveis, há
casos em que eles são legalmente possíveis.
A discussão sobre
critérios deve prosseguir ao largo
desse equívoco, de modo a gerar um
paradigma positivo que possa se estender às
demais cadeias produtivas. Muito melhor que
a suposta "moratória" seria
enfrentar a questão concreta dos custos
socioambientais de uma produção
de boa qualidade por meio da constituição
de um fundo composto por uma taxação
acordada nas transações comerciais
que seja revertido para projetos de apoio
aos produtores dispostos a sanar os seus passivos
e a melhorar a qualidade do seu produto. Se
os compradores e consumidores desejam dispor
sempre de soja de boa qualidade, devem colaborar
ativamente com os seus parceiros, compartilhando
os custos implícitos, venha ela de
onde vier.
(Fonte: FSP, 06/12/2006, Tendências/Debates,
p. A3)
ISA, Marcio Santilli.