Inpa
- 08/02/2007 - Em pesquisa realizada no âmbito
do projeto Ygarapés, foi possível
conhecer a fundo algumas características
notáveis de determinada espécie
de piaba, que muda de cor conforme seu habitat
Imagine-se nadando em um igarapé limpo,
de águas rasas e cristalinas e, subitamente,
deparar-se com um peixe-camaleão. Certamente,
essa seria uma situação rara
de acontecer. O peixe é muito pequeno
(aproximadamente 5 cm) e faz jus ao seu nome
popular: é mestre na arte de se camuflar,
e não é fácil percebê-lo.
O Ammocryptocharax elegans, como é
conhecido cientificamente, é uma espécie
de piaba, objeto de estudos de pesquisadores
do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia
(Inpa/MCT), no âmbito do projeto Ygarapés.
Descoberto e descrito há
cerca de 30 anos, o peixe teve sua identidade
mal interpretada. De acordo com o coordenador
da pesquisa, Jansen Zuanon, analisando o nome
dado originalmente à espécie,
Ammo significa areia, crypto é igual
a escondido e charax quer dizer piaba. Unindo
as peças, obtém-se "piaba
que se esconde na areia", e não
era bem esse o comportamento adotado pelo
animal na natureza. Ou seja, o nome de origem
da espécie dava uma pista errada sobre
o comportamento do peixe.
"Começamos a
chamar popularmente essa espécie de
peixe-camaleão porque ele fica parado
em meio às plantas submersas, e tem
a capacidade de mudar de cor conforme o tipo
de ambiente e as variações de
luz no igarapé, como tática
de defesa e, principalmente, de caça",
revela o pesquisador.
Em uma das diversas idas
a campo, utilizando como técnica de
observação o mergulho, a equipe
do projeto começou a notar a presença
abundante de um peixe de coloração
verde brilhante, encontrado sempre associado
a plantas aquáticas de mesma coloração.
Em experimentos simples realizados no próprio
campo –isolando o peixe em garrafas plásticas
em meio a plantas de diferentes cores- comprovou-se
a sua habilidade em mudar de cor conforme
o ambiente.
"Esse peixe utiliza
modificações na ponta das nadadeiras
para agarrar-se às plantas. Dessa forma,
ele fica parado em locais de correnteza relativamente
forte. Associando sua cor a da planta, ele
fica imperceptível aos predadores que
caçam orientados principalmente pela
visão e, ao mesmo tempo, permite que
ele se aproxime de suas presas sem ser notado",
revela Zuanon.
O peixe-camaleão
ainda recebe esse nome porque quando está
imóvel e camuflado consegue movimentar
apenas os olhos, observando continuamente
o ambiente ao seu redor. Essa mobilidade dos
olhos é muito maior do que a observada
em outras piabas. "Ele visualiza a sua
presa, observa todo o ambiente que a cerca,
faz um rápido e pequeno deslocamento
e agarra-a, voltando para a mesma posição.
Assim, não é só a habilidade
única de mudar de cor que o torna especial,
o seu comportamento também é
único", acrescenta o pesquisador.
Essa descoberta sobre o
comportamento do animal foi fruto direto das
atividades desenvolvidas no Projeto Ygarapés
que atua, desde 2001, em toda a bacia amazônica,
tendo sua área central localizada na
cidade de Manaus (AM). Ele conta com uma equipe
reduzida, formada por apenas sete pessoas
engajadas em desbravar o universo aquático
de igarapés dos rios Negro, Japurá,
Urucu, Trombetas, Tapajós, entre outras
bacias hidrográficas. A ação
encoraja diariamente seus integrantes a encarar
um desafio de proporções amazônicas,
que é avaliar os efeitos da fragmentação
e alteração da floresta nos
sistemas aquáticos (igarapés,
riachos, rios etc.) que drenam a região.
As mudanças são analisadas e
detectadas a partir da utilização
de grupos biológicos, como peixes,
aranhas, libélulas, anfíbios
e insetos aquáticos, que vivem em sintonia
plena com esses habitats.
Como explicou Zuanon, a
ciência já atua de uma forma
avançada na análise dos impactos
causados pela alteração da cobertura
vegetal em ambientes terrestres. Entretanto,
há uma deficiência enorme quando
os olhares se voltam para os recursos hídricos,
mostrando uma incoerência genuína,
já que a Amazônia abriga a maior
rede de rios e igarapés do planeta.
Um exemplo de pesquisa de ponta realizada
na área terrestre é o Projeto
Dinâmica Biológica de Fragmentos
Florestais (PDBFF), cujo objetivo é
determinar as conseqüências ecológicas
do desmatamento e da fragmentação
florestal na Amazônia. Nesse processo,
o projeto Ygarapés surge dando força
ao componente aquático.
O peixe como indicador de
biodiversidade
Apesar de serem encontrados em uma grande
área da Amazônia, esses animais
têm uma forte relação
com a presença de plantas aquáticas,
principalmente da espécie Thurnia sphaerocephala,
que tem folhas longas e achatadas em forma
de fita. Essas plantas não são
tão freqüentes, pois precisam
de uma quantidade de luz relativamente grande
para prosperar. Por isso, muitas vezes, em
regiões que tiveram sua mata ciliar
alterada, abrindo pequenas clareiras sobre
o canal do igarapé, essa e outras espécies
tornam-se mais abundantes, aumentando também
a presença desses peixes. Para que
isso aconteça, entretanto, é
fundamental que a qualidade da água
seja ótima.
"Existem outros tipos
de associações entre os animais
e seus habitats, incluindo outros tipos de
peixes estudados no projeto, mas a habilidade
do peixe-camaleão em mudar de cor é
única. Do ponto de vista dos estudos
sobre a fragmentação da floresta,
a presença e a abundância do
peixe-camaleão podem fornecer informações
importantes sobre a qualidade da água
e o estado de preservação da
mata ciliar", ressalta Zuanon.
Calcado em dados que apontam
para a existência de uma quantidade
cada vez menor de sistemas aquáticos
intactos, especialmente nos arredores de Manaus
e de outras grandes cidades, o pesquisador
se entristece ao constatar que muitos igarapés
e lagos desaparecem sem que ao menos se saiba
quais espécies de animais viviam nesses
ecossistemas. O interesse despertado no público
em geral, e mesmo em pescadores profissionais
do Inpa, com a descoberta do peixe-camaleão
vem sustentar essa realidade.
"Não existe
o costume da população local
em observar e conhecer os pequenos peixes
que vivem nos igarapés. Talvez isso
aconteça porque os pequenos igarapés
não abrigam peixes de grande porte
e em quantidade suficiente para servir como
fonte de pescado. As pessoas vão aos
igarapés apenas para banhar-se, na
maioria das vezes. Das populações
humanas que habitam a região, apenas
os índios têm um conhecimento
maior sobre esses pequenos peixes, pois fazem
parte do seu cotidiano e da sua mitologia",
salienta Zuanon.
Portanto, divulgar as informações
e conhecimentos gerados sobre os igarapés
e seus peixes, um sistema que se encontra
em risco de desaparecer, pode permitir que
as pessoas apreciem uma parte da imensa riqueza
natural da Amazônia, e que está
muito perto de nós. A principal forma
de manter essa fauna preservada é conservar
a integridade do ambiente aquático.
Em forma de artigo científico, a pesquisa
foi publicada no final de 2006 na revista
alemã Ichthyological Exploration of
Freshwaters.
Grace Soares - Assessoria de Comunicação
do INPA