30/03/2007
- Leia artigo "Justiça federal
manda tirar grileiro do Xingu", do jornalista
Lúcio Flávio Pinto, publicado
originalmente na edição da segunda
quinzena de março do Jornal Pessoal,
sobre decisão judicial que determina
que a Incenxil, uma das empresas do grupo
C.R. Almeida, retire-se imediatamente da fazenda
Curuá, localizada na Terra do Meio,
na bacia do Xingu. A fazenda, com quase cinco
milhões de hectares, é considerada
a maior área grilada do Brasil.
O grupo controlado pela
Construtora C. R. Almeida vai começar
a ser despejado da maior área grilada
do mundo: o juiz federal Herculano Martins
Nacif determinou, na semana passada, que a
Incenxil desocupe imediatamente o imóvel
Fazenda Curuá, com supostos 1,3 milhão
de hectares, uma das partes de um conjunto
de terras, que poderia ter de cinco milhões
a sete milhões de hectares, em Altamira,
na região central do Pará, também
conhecida como Terra do Meio.
O juiz aceitou reconsiderar,
a pedido do Ministério Público
Federal, decisão judicial anterior,
que admitiu a permanência da empresa
na área sob litígio, que o poder
público tenta reaver há mais
de 10 anos. Ela se sobrepõe a três
terras indígenas (Xipaya, Kuruaya e
Baú) e três unidades de conservação:
Floresta Nacional de Altamira, Estação
Ecológica da Terra do Meio e Reserva
Extrativista Riozinho do Anfrísio.
Se não cumprir a ordem, a Indústria,
Comércio, Exportação
e Navegação do Xingu Ltda. poderá
pagar multa diária de 100 mil reais.
A medida foi fundamentada
em razões técnicas e provas,
juntadas pela Procuradoria Regional da República,
demonstrando que as terras jamais foram desmembradas
do patrimônio público para a
propriedade privada. As evidências da
fraude cartorial, que supriu essa ilegalidade,
também são convincentes, admitiu
o juiz federal: “De fato, uma área
que era pequena e do Estado do Pará,
arrendada para extrativismo, depois se transformou
num colosso de terras, abrangendo inclusive
áreas de reservas indígenas,
não pode ser considerada da Incenxil
assim, sem mais nem menos”.
Concluiu ser “materialmente
impossível” se falar na posse de uma
extensão de terras de quase cinco milhões
de hectares por parte de uma única
empresa. “A título de ilustração”,
apresenta um raciocínio: “se fosse
contratado apenas um preposto para ocupar
cada fração de 1.000 ha (o que
já é uma área muito grande)
da suposta Fazenda Curuá, seriam necessários
nada menos que 4.700 mandatários. Em
uma perspectiva otimista, a empresa gastaria
cerca de R$ 21.000.000,00 (vinte e um milhões
de reais) por ano só para manter a
posse da área, o que é economicamente
inviável”.
Constatou ainda o magistrado
“erros crassos na condução da
função notarial” por parte da
cartorária Eugênia Freitas, que
acabou perdendo a função, por
ato do Tribunal de Justiça do Estado,
depois de responder a 29 procedimentos criminais
na justiça federal. Ela – segundo a
sentença – “parecia averbar tudo sem
o mínimo de conferência. Ela
parecia permitir a multiplicação
de áreas sem qualquer critério,
sem nenhuma checagem, baseando-se em declarações
e plantas sem suporte na observação
direta, tudo substituído praticamente
por um Darf - conforme disse em interrogatório
perante este juiz”.
O juiz federal também
tomou como base para sua sentença o
depoimento que lhe prestou Roberto Beltrão,
filho de Cecílio do Rego Almeida, em
interrogatório durante a instrução
processual. Identificado como “provavelmente
o real responsável pela Incenxil”,
Beltrão “admitiu que, na prática,
a empresa foi criada com um único real
objeto: comprar terras no Pará. Disse,
em interrogatório no processo criminal
correlato a este: ‘apenas sabia [ele, Roberto]
que, comprando a Incenxil, estaria verdadeiramente
comprando as terras da referida empresa’”.
Sobre a compra em si, Roberto
Beltrão declarou pouco saber, observa
o juiz federal: “Disse pouco saber também
da regularidade da operação
e da idoneidade dos corretores que a teriam
viabilizado. Mais importante: em nenhum momento,
no processo criminal, que vem desde 2003,
há uma cabal e consistentemente embasada
afirmação, pelos réus,
de que haja uma perfeita cadeia dominial que
justifique a propriedade, por uma empresa
realmente inexistente, de uma área
riquíssima de quase 5 milhões
de ha. Sem isso, tudo está muito frágil”.
O juiz Nacif esclarece que,
para si, “vale muito mais a declaração
do próprio Roberto Beltrão em
interrogatório: ‘que não tem
notícia de onde seria a sede da empresa,
nunca viu seus sócios, não tem
idéia de qual seria seu objeto social,
não conhecia outros bens eventualmente
de propriedade da Incenxil, nem tinha informações
diretas sobre sua atuação, sobre
seu funcionamento, sobre a idoneidade de seus
sócios’. Se a Empresa é tão
atuante assim, como diz ser, não seria
natural que Roberto Beltrão, um dos
responsáveis por ela, soubesse disso?”,
observa.
Com tais informações,
chegou à decisão de que, “qualquer
ocupação ou exploração
da terra, pela Incenxil, que não a
feita através de nativos e colonos,
em condição de agropecuária
ou extrativismo de base comunitária
ou familiar, deve cessar imediatamente. Assim
como deve cessar também a utilização
indevida de força policial militar
em benefício de interesses especiais
da Incenxil”.
A decisão do juiz
Herculano Nacif ainda não dá
um basta definitivo à audaciosa grilagem.
Há batalhas pendentes a decidir. Mas
provavelmente elas terão o mesmo resultado:
a derrota dos grileiros. Um agravo impetrado
pela Incenxil junto ao Tribunal Federal de
Recursos, em Brasília, foi rejeitado
à unanimidade pela 4ª turma da
corte. A grilagem se tornou descarada demais
para continuar a ser tolerada: esse é
o recado da justiça federal para quem
quiser ouvir.
Justiças
A justiça federal
é categórica na sua sentença:
o grileiro é, de fato, grileiro e,
como tal, criminoso, contra quem se aplica
o rigor da lei. Mas na justiça estadual,
mais diretamente responsável por esse
ameaçado patrimônio público
fúndiário, que constitui sua
jurisdição territorial, quem
chama o grileiro de grileiro tem que ser punido,
por crime de ofensa ao distinto cidadão.
Na justiça federal, talvez eu até
fosse elogiado. Na justiça estadual,
sou condenado por dizer a verdade. E Kafka
nem é paraense.
Lúcio Flávio
Pinto
+ Mais
Justiça Federal de
Altamira autoriza implantação
de Belo Monte
30/03/2007 - Juiz julga
improcedente ação movida pelo
Ministério Público Federal,
acusando o movimento ambientalista de querer
impedir o desenvolvimento e afirmando que
usina será a “redenção”
para o povo brasileiro. A decisão,
da qual ainda cabe recurso, abre precedente
negativo ao afirmar que o Congresso Nacional
pode autorizar a implantação
de usinas hidrelétricas em terras indígenas
sem necessidade de lei específica e
tampouco de consulta aos povos afetados.
Um ano após a Justiça
Federal de Altamira paralisar liminarmente
o licenciamento ambiental da Usina Hidrelétrica
(UHE) de Belo Monte, a ser construída
no rio Xingu, ela mesma voltou atrás
e julgou improcedente o pedido feito pelo
Ministério Público Federal (MPF)
de anular o licenciamento ambiental levado
a cabo pelo Ibama.
A ação do
MPF afirmava que o licenciamento ambiental
não poderia ocorrer antes da autorização
do Congresso Nacional, mas como o Decreto
Legislativo 788/05 – que autoriza a implantação
do empreendimento – seria inválido,
o processo de licenciamento conduzido pelo
Ibama não poderia seguir adiante. Em
sua ação, o MPF afirma que a
autorização do Congresso Nacional
fere a Constituição Federal
por não terem sido ouvidas previamente
as comunidades indígenas afetadas e
por não existir lei regulamentando
o aproveitamento hidrelétrico em terras
indígenas, como determina o art.231
da Constituição.
Na sentença, de 51
páginas, o juiz afirma logo no início
que “a demora na conclusão sobre a
viabilidade do projeto UHE Belo Monte apenas
trará prejuízos estratégicos
e financeiros ao país e aos milhões
de consumidores” e que “forçoso é
admitir-se que tal empreendimento reveste-se
da mais alta importância no que tange
à planta energética nacional”.
Inspirado no Plano de Aceleração
do Crescimento (PAC) – conjunto de obras recentemente
lançado pelo Governo Federal – o juiz
afirma que a construção de Belo
Monte traria “independência energética”
ao País, hoje dependente de fontes
energéticas externas, como o gás
boliviano.
No mérito, a sentença
discorre sobre a constitucionalidade do Decreto
788/05, que já havia sido impugnado
pelo MPF e por um conjunto de organizações
da sociedade civil no Supremo Tribunal Federal.
Afirmando que ele teve aprovação
maciça dos membros do Congresso Nacional,
o que já traria “notória dificuldade
para se promover censura a tal diploma”, diz
que o Parlamento não deveria ouvir
as comunidades indígenas afetadas antes
de autorizar a implantação do
empreendimento, pois o texto constitucional
não teria dito qual é o momento
oportuno e, ademais, não seria razoável
“consultar as comunidades envolvidas, inclusive
as indígenas, sem antes efetuar um
estudo de viabilidade/antropológico”.
Na representação
apresentada em 2005 à Procuradoria
Geral da República, questionando a
autorização dada pelo Congresso
Nacional à implantação
do empreendimento, o conjunto de organizações
sociais – dentre elas o ISA – apresentou o
argumento de que os parlamentares não
poderiam autorizar a construção
da usina sem antes ouvir os povos indígenas
afetados e sem saber quais os possíveis
impactos ambientais, sociais e econômicos
da usina. Da forma como foi feito o decreto,
o Congresso Nacional deu carta branca ao empreendimento
sem atentar para seu dever de cautela ao autorizar
obras que afetem terras indígenas.
No último dia 16,
o Supremo Tribunal Federal já havia
autorizado a continuidade do licenciamento
ambiental ao derrubar liminar que havia sido
proferida pelo Tribunal Regional Federal da
1ª Região. Com a sentença,
a decisão do tribunal superior perde
eficácia, já que se referia
a uma decisão preliminar.
Da sentença ainda
cabe recurso para o TRF 1ª Região.
Enquanto isso, o licenciamento ambiental de
Belo Monte prossegue, como, aliás,
já poderia ocorrer desde março
do ano passado, quando a liminar foi revogada.
A grande questão é saber se
é razoável avaliar o impacto
socioambiental de Belo Monte isoladamente,
já que estudos apontam para a inviabilidade
econômica da usina se não forem
construídas outras rio acima, as quais
impactariam diretamente mais de nove terras
indígenas e modificariam para sempre
as condições naturais do Xingu,
um dos mais importantes rios brasileiros.
O estudo de inventário do Xingu, que
planeja seu aproveitamento hidrelétrico
integral e indica a quantidade e localização
das barragens projetadas, está sendo
revisto desde 2005 e até o momento
não foi entregue à Agência
Nacional de Energia Elétrica ou apresentado
à sociedade. Sem ele, fica difícil
dimensionar qual a utilidade de se licenciar
apenas Belo Monte.
ISA, Raul Silva Telles do Valle.