17/04/2007 - O governo não
pode aprovar e desenvolver os grandes projetos
de infra-estrutura que afetam os povos indígenas
sem antes consultá-los. Este foi o
principal recado do primeiro dia do Acampamento
Terra Livre, que vai até quinta-feira,
dia 19 de abril, na Esplanada dos Ministérios,
em Brasília. Considerado um dos mais
polêmicos entre as organizações
indígenas, o assunto foi tratado em
entrevista coletiva e em palestra nesta segunda-feira,
durante a mobilização. O acampamento
é a principal mobilização
do Abril Indígena
Os grandes projetos de infra-estrutura
e a ausência de consulta às populações
indígenas sobre eles estão entre
os principais temas em debate nesta edição
do Abril Indígena. Há algumas
semanas, o governo encaminhou ao Congresso
o Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC), conjunto de dezenas de
grandes obras que vem sendo apresentado pelo
Planalto como solução para o
desempenho medíocre da economia – a
transposição do Rio São
Francisco, as usinas de Belo Monte (PA) e
do rio Madeira (PA), por exemplo. O problema
é que várias delas têm
grande impacto sobre as Terras Indígenas
e, nesses casos, a Constituição
e normas internacionais ratificadas pelo Brasil
exigem que as comunidades indígenas
têm de ser consultadas antes que elas
sejam implementadas.
“A transposição
do Rio São Francisco vai atingir 26
povos indígenas e eles ainda não
foram consultados. Não vamos aceitar
isso”, advertiu Neguinho Truká, uma
das lideranças do povo Truká,
de Pernambuco. Ele argumentou que existem
alternativas já comprovadas por estudos
à transposição e que
as obras previstas no projeto de revitalização
do São Francisco – saneamento básico
e construção de casas, por exemplo
– são obrigação do governo.
“Isso não pode ser usado como moeda-de-troca
com as comunidades”.
Para Roberto Smeraldi, da
Ong Amigos da Terra, muitas vezes, o problema
não é a obra em si, mas o pacote
que vem junto com ela: os impactos dos canteiros
de obras e da valorização das
terras. Smeraldi, que fez uma análise
sobre o PAC, lembrou que projetos de infra-estrutura
acabam estimulando a criação
de municípios e movimentando a economia
local. “Por isso a pressão pelas obras
vem muitos mais dos políticos e empresários
regionais do que dos próprios consumidores.”
De acordo com ele, sem planejamento e sem
a presença do Estado, o processo também
gera desmatamento e grilagem. “Se essa nova
‘geografia dos supercanteiros’ se confirmar,
teremos mais pecuária e mais pressões
sobre as TIs já demarcadas e ainda
a demarcar”. Smeraldi lembrou que o estímulo
à produção dos biocombustíveis
pode ser outro grande fator para interiorizar
a grande produção de gado na
Amazônia.
Segundo Raul Silva Telles
do Valle, do Instituto Socioambiental (ISA),
as comunidades indígenas têm
de exigir um plano de consulta tão
bem estruturado quanto o próprio projeto
das obras. “Isso não é nenhum
favor. Está na Lei”. O advogado avaliou
que a maneira como o governo vem anunciando
e encaminhando as obras, por si só,
já é uma forma de pressão
política indevida que não considera
os interesses dos povos indígenas.
“Não interessa ao governo e a muitos
empresários realizar essas consultas,
porque algumas comunidades não querem
essas obras”.
Ontem, 16 de abril, índios
paralisaram a rodovia Belém-Brasilia,
em protesto contra a construção
da Usina do Estreito, entre o Maranhão
e Tocantins, porque não foram ouvidos
sobre o projeto. O bloqueio de dez horas provocou
um congestionamento de cerca de dez quilômetros.
Os índios montaram um acampamento em
frente ao canteiro de obras da hidrelétrica
e dizem que ficarão lá por tempo
indeterminado. A principal reivindicação
é que o projeto seja suspenso. Os manifestantes
alegam que não houve uma discussão
séria e profunda sobre os impactos
ambientais da obra. A ação faz
parte do Abril Indígena. Participam
povos do Tocantins - como os Apinajé,
Javaé, Krahô, Karajá e
Xerente - e diversos povos do Maranhão
Gavião, Krikati.
Em audiência na Procuradoria-geral
da República, como parte de um seminário
realizado em julho do ano passado, lideranças
indígenas afirmaram que suas comunidades
não vinham sendo consultadas sobre
empreendimentos que afetariam suas terras.
Na ocasião, o subprocurador Eugênio
Aragão, integrante da 6ª Câmara
do MPF (de Índios e Minorias), comprometeu-se
a centralizar o trabalho de cobrar do governo
uma lista com todos os projetos de infra-estrutura
que afetassem as TIs e cobrar o encaminhamento
das reivindicações dos índios.
A lista não foi entregue até
hoje.
O Abril Indígena
é o conjunto de manifestações
e protestos do movimento indígena que
marcam o mês de abril já pelo
terceiro ano consecutivo. Neste ano, o acampamento
em Brasília está reunindo cerca
de mil indígenas, de mais de cem povos
diferentes. Até quinta-feira, devem
ocorrer plenárias, debates, atividades
culturais e manifestações para
propor soluções aos principais
problemas das comunidades indígenas
e denunciar as agressões aos seus direitos.
Serão discutidos demarcação
e proteção de terras indígenas,
políticas de saúde e educação,
a participação dos povos indígenas
nas políticas públicas, um novo
Estatuto para os Povos Indígenas e
a vinculação ao estatuto de
temas como a mineração em terras
indígenas.
Diálogo
O novo presidente da Fundação
Nacional do Índio (Funai), Márcio
Meira, esteve no acampamento e anunciou para
quinta-feira, Dia do Índio, a instalação
da Comissão Nacional de Política
Indigenista (CNPI). O colegiado, que será
integrado por 20 lideranças indígenas,
irá discutir as políticas indigenistas
nacionais e é uma antiga reivindicação
do movimento indígena. Meira disse
o diálogo com os povos indígenas
será a principal marca de sua gestão
à frente da Funai. “Daí a importância
da comissão. Ela não é
uma dádiva do governo, mas uma conquista
das organizações indígenas
e um marco histórico”. Meira também
informou que foram corrigidos e remetidos
novamente ao Ministério da Justiça
todos os processos de terras indígenas
que tinham sido devolvidos ao órgão
indigenista pelo ministério. Ele se
comprometeu a ir às assembléias
regionais das organizações indígenas.
“O Abril Indígena
servirá para testar o novo presidente
da Funai e sua disposição de
estar ao lado dos povos indígenas”,
respondeu Jecinaldo Cabral Sateré-Mawé,
coordenador-geral da Coordenação
das Organizações Indígenas
da Amazônia Brasileira (Coiab). Jecinaldo
disse esperar que a CNPI possa suprir a falta
de uma política integrada do governo.
"Tem alguns setores favoráveis,
mas o governo Lula nunca teve uma política
indigenista coordenada. Sempre ficamos ali
no campo social e em segundo, último
plano".
Saúde
A saúde indígena
também foi um tema do primeiro dia
acampamento. Durante a entrevista coletiva,
Lea Aquino, Kaiowá Guarani, lembrou
que a mortalidade infantil tem relação
direta com a falta de terra. “As nossas crianças
passam fome não por que não
trabalhamos, mas por que não temos
terra. E as nossas terras, não são
nossas, por que estão demarcadas, mas
não nos deixam morar nelas”.
“Os Yanomami estão
morrendo de malária de novo. Estamos
muito preocupados com a situação”,
alertou Davi Kopenawa, presidente da Hutukara
– Associação Yanomami. Ele também
denunciou a presença de garimpeiros
na TI de seu povo. “Há quatro anos
que a Funai não toma nenhuma providência
em relação a isso”. Davi disse
que o novo presidente da Funai não
pode ficar apenas em seu gabinete em Brasília,
mas tem de ir às aldeias, conhecer
as comunidades e seus problemas.
Também estão
presentes no acampamento 15 lideranças
do Vale do Javari, onde 24,9% dos indígenas
estão contaminados pelo vírus
da Hepatite Delta, a forma mais perigosa da
doença, e 85,11% dos índios
examinados pela Funasa já tiveram contato
com o vírus da hepatite. Clovis Marubo,
coordenador do Conselho Indígena do
Vale do Javari (Cijava), relatou na entrevista
que “os técnicos de saúde falam
que os povos do Javari vão acabar em
20 anos se nada for feito em relação
a eles”. Ele também mostrou muita preocupação
pelos povos sem contato que vivem na região,
por conta do trânsito de madeireiros
na área.
De acordo com as lideranças
do Abril Indígena, a crise na saúde
tem como uma de suas causas principais a deturpação
do modelo original de atendimento, que previa
a autonomia política, administrativa
e financeira dos Distritos Especiais de Saúde
Indígena (DSEIs). Na prática,
vem acontecendo o atrelamento aos interesses
políticos partidários, com o
constante loteamento de cargos dentro da Fundação
Nacional de Saúde (Funasa), responsável
pela saúde indígena. Para o
movimento indígena, é necessário
garantir a autonomia dos DSEIs, o fortalecimento
do controle social, o estabelecimento de critérios
para preenchimento de cargos que contemplem
conhecimento e o compromisso com a questão
indígena, além da capacidade
de gestão e de diálogo com o
movimento indígena.
ISA, Oswaldo Braga de Souza com a colaboração
de Marcy Picanço.
+ Mais
Acampamento define estratégias
do movimento
18/04/2007 - O documento
final, com as propostas dos mais de 100 povos
que participam do acampamento, será
divulgado no início da Audiência
Pública que será realizada na
quinta-feira, 19 de abril, no Senado Federal,
às 9 horas. Um dos principais temas
tratados durante a quarta-feira será
o da educação escolar indígena.
O Acampamento Terra Livre
define, nesta quarta-feira, dia 18 de abril,
prioridades e estratégias para a intervenção
do movimento indígena e indigenista
nos rumos da política indigenista do
Governo Federal. À tarde, a plenária
vai aprovar os encaminhamentos da mobilização,
depois de realizar reuniões em grupos
de trabalho, durante a manhã. Os temas
abordados pelos grupos serão violência
contra os povos indígenas; situação
fundiária; Comissão Nacional
de Política Indigenista; saúde
indígena; educação escolar
e culturas indígenas.
O documento final, com as
propostas dos mais de 100 povos que participam
do acampamento, será divulgado no início
da Audiência Pública que será
realizada na quinta-feira, 19 de abril, no
Senado Federal, às 9 horas.
O acampamento é a
principal mobilização do Abril
Indígena, conjunto de manifestações
e protestos do movimento indígena que
marcam o mês de abril já pelo
terceiro ano consecutivo. Neste ano, o acampamento
reúne cerca de mil indígenas,
de mais de cem povos diferentes. Estão
ocorrendo plenárias, debates, atividades
culturais e manifestações para
propor soluções aos principais
problemas das comunidades indígenas
e denunciar as agressões aos seus direitos
(saiba mais).
Um dos principais temas
tratados durante a quarta-feira será
o da educação escolar indígena.
Nos últimos 10 anos, a partir da aprovação
da Lei 9394/96, que instituiu a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional,
e do Plano Nacional de Educação
(2001), ocorreu no Brasil um processo acelerado
de expansão da oferta do Ensino Fundamental,
que incluiu as comunidades indígenas.
Na atualidade, o desafio é estender
a oferta para o ensino médio e o superior.
O senso escolar de 2003
já apontava que naquele ano existiam
150 mil estudantes indígenas no Brasil.
Deste total, 3% (4,5 mil alunos aproximadamente)
estavam no ensino médio. O Censo Escolar
de 2006 revela que o número de estudantes
indígenas subiu para 172.256, dos quais
4.749 são do ensino médio. O
número parece irrisório, mas
representa um crescimento de 400% só
nos últimos quatro anos, uma vez que
em 2002 eram 1.187 alunos indígenas
do ensino médio.
Outro dado curioso é
em relação ao ensino superior.
Estima-se que haja 4 mil estudantes indígenas
cursando graduação ou pós-graduação,
o que representa mais da metade do contingente
de estudantes indígenas do ensino médio.Quanto
aos professores, atualmente mais de 95% dos
que atuam nas escolas indígenas são
professores indígenas.
Não há dúvida
sobre os avanços conquistados nos últimos
anos, em termos da oferta de educação
escolar aos povos indígenas, expressos
no crescimento quantitativo de oferta em todos
os níveis de ensino. A conquista deve-se,
em grande parte, à mobilização
dos índios, às políticas
de universalização do ensino
básico e às ações
afirmativas.
Professores e escolas indígenas,
materiais didáticos específicos
e metodologias inovadoras nas práticas
educativas aos poucos vão surgindo
e ganhando espaço nas escolas, permitindo
aos índios oportunidades de escolhas
decisivas nas lutas por seus projetos, direitos
e interesses.
No entanto, o avanço
quantitativo não foi acompanhado pela
qualidade da escola indígena, na perspectiva
de uma educação multicultural,
diferenciada e de qualidade. Segundo dados
preliminares levantados pela Coordenação
das Organizações Indígenas
da Amazônia Brasileira (Coiab), a maioria
das escolas indígenas na Amazônia
continua com velhos problemas, que vão
desde ausência de alimentação
e material escolar até a falta de prédios
escolares e de professores qualificados. Isso
demonstra que existem problemas na gestão
das políticas de educação
escolar indígena.
Para Gersem Baniwa, conselheiro
na Câmara de Educação
Básica do Conselho Nacional de Educação,
a solução para esta situação
passa por dois caminhos: criação
de mecanismos para o cumprimento da legislação
já existente e a criação
de formas de participação e
controle social mais efetivos, sobretudo respeitando
formas próprias dos povos indígenas,
como encontros, assembléias, congressos,
mobilizações, mas também
as outras formas mais institucionalizadas,
como no Conselho Nacional de Educação
e, quando instituída, a Comissão
Nacional de Educação Escolar
Indígena.
E mudanças nas estruturas
política, jurídica e administrativa
da educação escolar indígena
para garantir maior efetividade no respeito
aos direitos indígenas no campo específico
da educação escolar. "A
lógica da Administração
Pública brasileira inviabiliza a possibilidade
de gestão própria dos povos
indígenas nas suas escolas. Isso precisa
ser modificado", avalia Baniwa.