29-05-2007 - São
Paulo - Após 15 meses na Comissão
Técnica Nacional de Biossegurança,
Lia Giraldo, médica e pesquisadora
da Fiocruz, comunica seu desligamento e faz
um balanço sobre o funcionamento da
CTNBio
Confira íntegra da
carta na qual Lia comunica seu desligamento
da CTNBio
Excelentíssimo Senhor
Ministro da Ciência e Tecnologia
Excelentíssima Senhora Ministra do
Meio Ambiente
Ilustríssimo Senhor Presidente da Comissão
Técnica Nacional de Biossegurança
Referente: Notificação
de desligamento da Comissão Técnica
Nacional de Biossegurança e declaração
de motivos.
Há 31 anos sou servidora
pública dedicada à Saúde
Coletiva, dos quais 20 anos como médica
sanitarista, tendo por esse período
trabalhado na região siderúrgica-petroquímica
de Cubatão - SP, promovendo a saúde
dos trabalhadores e ambiental. Fiz meu mestrado
e doutorado investigando biomarcadores para
análise de risco. Há dez anos
sou pesquisadora titular da Fundação
Oswaldo Cruz e docente do programa de Pós-Graduação
do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães,
onde sou responsável pelas disciplinas
obrigatórias de “Filosofia da Ciência
e Bioética” e de “Seminários
Avançados de Pesquisa”.
Como técnica, gestora,
cientista e professora tive que lidar com
diversas situações de conflitos
de interesses que muitas vezes emergiam de
forma aguda e tenho claro que os conflitos
são parte do processo social e por
isso mesmo devem estar subordinados a regras
de convivência civilizada, em respeito
ao estado de direito e à democracia.
Sou membro titular na CTNBio
como Especialista em Meio Ambiente indicada
pelo Fórum Brasileiro de Organizações
Não Governamentais, a partir de uma
lista tríplice à Ministra do
Meio Ambiente, a quem coube a escolha. Hoje,
após quinze meses de minha nomeação,
peço o desligamento formal dessa Comissão
e apresento a titulo de reflexão algumas
opiniões críticas no sentido
de colaborar com o aprimoramento da biossegurança
no país.
Na minha opinião,
a lei 11.105/2005 que criou a CTNBio fez um
grande equívoco ao retirar dos órgãos
reguladores e fiscalizadores os poderes de
analisar e decidir sobre os pedidos de interesse
comercial relativos aos transgênicos,
especialmente sobre as liberações
comerciais.
A CTNBio está constituída
por pessoas com título de doutorado,
a maioria especialistas em biotecnologia e
interessados diretamente no seu desenvolvimento.
Há poucos especialistas em biossegurança,
capazes de avaliar riscos para a saúde
e para o meio ambiente.
Os membros da CTNBio têm
mandato temporário e não são
vinculados diretamente ao poder público
com função específica,
não podendo responder a longo prazo
por problemas decorrentes da aprovação
ou do indeferimento de processos.
A CTNBio não é
um órgão de fomento à
pesquisa ou de pós-graduação
ou conselho editorial de revista acadêmica.
O comportamento da maioria de seus membros
é de crença em uma ciência
da monocausalidade. Entretanto, estamos tratando
de questões complexas, com muitas incertezas
e com conseqüências sobre as quais
não temos controle, especialmente quando
se trata de liberações de OGMs
no ambiente.
Nem mesmo o Princípio
da Incerteza, que concedeu o Prêmio
Nobel à Werner Heisenberg (1927), é
considerado pela maioria dos denominados cientistas
que compõe a CTNBio. Assim, também
na prática da maioria, é desconsiderado
o Princípio da Precaução,
um dos pilares mais importantes do Protocolo
de Biossegurança de Cartagena que deve
nortear as ações políticas
e administrativas dos governos signatários.
O que vemos na prática
cotidiana da CTNBio são votos pré-concebidos
e uma série de artimanhas obscurantistas
no sentido de considerar as questões
de biossegurança como dificuldades
ao avanço da biotecnologia.
A razão colocada
em jogo na CTNBio é a racionalidade
do mercado e que está protegida por
uma racionalidade científica da certeza
cartesiana, onde a fragmentação
do conhecimento dominado por diversos técnicos
com título de doutor, impede a priorização
da biossegurança e a perspectiva da
tecnologia em favor da qualidade da vida,
da saúde e do meio ambiente.
Não há argumentos
que mobilizem essa racionalidade cristalizada
como a única “verdade científica”.
Além da forma desairosa no tratamento
daqueles que exercem a advocacy no strito
interesse público.
Participar desta Comissão
requereu um esforço muito grande de
tolerância diante das situações
bizarras por mim vivenciadas, como a rejeição
da maioria em assinar o termo de conflitos
de interesse; de sentir-se constrangida com
a presença nas reuniões de membro
do Ministério Público ou de
representantes credenciados da sociedade civil;
de não atender pedido de audiência
pública para debater a liberação
comercial de milho transgênico, tendo
o movimento social de utilizar-se de recurso
judicial para garantia desse direito básico;
além de outros vícios nas votações
de processos de interesse comercial.
Também a falta de
estrutura da Secretaria Geral da CTNBio é
outra questão que nos faz pensar como
é que é possível ter
sido transferido para essa Comissão
tanta responsabilidade sem os devidos meios
para exerce-la? Assistimos a inúmeros
problemas relacionados com a instrução
e a tramitação de processos
pela falta de condições materiais
e humanas da CTNBio.
Para ilustrar cito o processo
No. 01200.000782/2006-97 da AVIPE que solicitava
a revisão de uma decisão da
CNBS. O mesmo foi distribuído para
um único parecerista pela Secretaria
Geral como um processo de simples importação
de milho GM para alimentar frangos. Graças
à interpretação de um
membro de que haveria necessidade de nomear
mais um parecerista, em função
dos problemas antigos deste processo que sofrera
recurso da ANVISA e do MMA junto ao CNBS,
é que se descobriu que este processo
estava equivocado. Mesmo porque a CTNBio só
poderia dar parecer a pedidos de importação
de sementes para experimentos científicos.
Importação de sementes para
comercialização para ração
animal, por exemplo, não é uma
atribuição da CTNBio.
Outro fato ilustrador é
o caso da apreciação do pedido
de liberação comercial da vacina
contra a doença de Aujeski (em que
também fui um dos relatores). Os únicos
quatro votos contra a liberação
não seriam suficientes para a sua rejeição.
No entanto, o fato de não se ter 18
votos favoráveis impediu a sua aprovação
e este fato foi utilizado amplamente para
justificar a redução de quorum
de 2/3 para maioria simples nas votações
de liberação comercial de OGM.
Ocorre que o parecer contrário à
aprovação desse processo trouxe
uma série de argumentos que sequer
foram observados por aqueles que já
tinham decidido votar em favor de sua liberação.
Essa vacina está
no mercado internacional há quinze
anos e só é comercializada em
cinco países, nenhum da comunidade
européia. Esta observação
levou-me a investigar as razões para
tal e encontrei uma série de questões
que contraindicam o seu uso na vigilância
sanitária de suínos frente aos
riscos de contrair a doença de Aujeski
e que também são seguidas pelo
Brasil.
Infelizmente este fato foi
utilizado politicamente no Congresso Nacional
como um argumento para justificar a redução
do quorum para liberação comercial,
mostrando que os interesses comerciais se
sobrepujam aos interesses de biossegurança
com o beneplácido da CTNBio.
Desta forma, em respeito
à cidadania e a minha trajetória
profissional de cientista e de formadora de
recursos humanos, não poderei mais
permanecer como membro de uma Comissão
Técnica Nacional de Biossegurança
que, a meu ver, não tem condições
de responder pelas atribuições
que a lei lhe confere.
Faço votos que uma
profunda reflexão inspire todos aqueles
que têm responsabilidade pública
para que os órgãos com competência
técnica e isenção de
interesses possam de fato assumir o papel
que o Estado deve ter na proteção
da saúde, do ambiente, da sociedade,
da democracia e do desenvolvimento sustentável.
Brasília, 17 de maio
de 2007.
Profa. Dra. Lia Giraldo
da Silva Augusto
Membro Titular da CTNBio
Especialista em Meio Ambiente