25 de Julho de 2007 - Pedro
Biondi - Repórter da Agência
Brasil - Pedro Biondi/Abr - Aldeia Ipatse
(Parque Indígena do Xingu) - O jornalista
Washington Novaes participa, como convidado,
da inauguração do Centro de
Documentação Kuikuro
Brasília - O jornalista
Washington Novaes destaca a circulação
de dinheiro nas comunidades como o grande
fator de perturbação no cotidiano
do Parque Indígena do Xingu e diz que
existe um conflito enunciado, ainda sem desfecho,
entre as novas e as antigas gerações.
Novaes retratou o Xingu
numa série de 11 documentários,
gravada em 1984. Voltou à região
em 2005 para documentar as mudanças
nos grupos de cinco povos que havia visitado
– Kuikuro, Mentuktire, Panará (antes
conhecidos como Kren-Akrore), Waurá
e Yawalapiti. No último fim de semana,
os Kuikuro da Aldeia Ipatse e fizeram uma
festa para, entre outros motivos, celebrar
o lançamento de seu novo vídeo,
com estréia na TV marcada para domingo
(29).
Em entrevista à Agência
Brasil, o jornalista aponta as razões
pelas quais diz que os índios mudaram
sua maneira de encarar o mundo. Confira o
primeiro trecho da entrevista. E leia também,
em seguida, a segunda e terceira parte.
Agência Brasil: O
que mudou no Xingu nessas duas décadas?
Washington Novaes: Eles ainda têm aquele
tempo que escorre mais devagar, mas com muitas
transformações. Praticamente
todas as casas, em várias aldeias,
têm antena parabólica, então,
quando têm combustível para o
gerador, eles vêem Jornal Nacional,
novela, jogos de futebol... Os jovens gostam
muito de dançar forró, jogar
futebol. Agora, talvez a transformação
mais funda seja que antigamente não
havia dinheiro nas aldeias, não tinha
monetarização na cultura. E,
a partir desse desejo de ter as nossas tecnologias,
de ter televisão, de ter DVD, de ter
gravador, de ter câmara de filmagem,
trator, barco com motor, foi preciso que passassem
a produzir dinheiro. Seja pelas associações
de cada aldeia fazendo apresentações
de suas danças e cantos fora, seja
recebendo de direitos de imagem em filmagens...
Também há, em várias
aldeias, muitos velhos recebendo aposentadoria.
E um salário mínimo é
uma renda grande nesses lugares.
Outras pessoas tentam com
a produção de artesanato. Os
velhos dizem que os jovens não querem
mais viver do modo tradicional, querem comprar
tudo. Querem ter roupa, tênis, óculos
escuros. E aí querem passar o tempo
inteiro fazendo artesanato, e não vão
se dedicar às atividades tradicionais,
como cultivar as roças para produzir
comida. Outro ângulo, muito mais complicado,
é que os jovens não querem aprender
os cantos, as danças, que estão
todos relacionados ao mundo dos espíritos.
ABr: A presença dos
espíritos era uma das origens dessa
imagem que o senhor usou, “terra mágica”,
não?
Novaes: Sim. No mundo dos índios a
questão do espiritual é decisiva,
esse lado é profundamente ligado ao
cotidiano, porque tudo tem um espírito
que é dono. Se o culto aos espíritos
não acontece a vida social começa
a perder sentido. Além disso, os jovens
não querem ser pajés, que é
um caminho cheio de sacrifícios e de
perigos, um longo processo. Os Waurá,
que em 1984 tinham 13 pajés, hoje têm
três; os Kuikuro tinham mais de dez
e hoje têm cinco. Os Yaualapiti só
têm Sapaim, que está com mais
de 70 anos. Já há discussão
entre os Waurá sobre um curso para
isso. Mas no caminho tradicional o pajé
não escolhe, é escolhido. Pode
ser por meio de uma picada de cobra, de um
rodamoinho que entra na casa, ou de uma doença,
ou nascer enrolado no cordão umbilical.
ABr: Antes da projeção
na Aldeia Ipatse, o senhor disse que os índios
alteraram para sempre sua maneira de ver o
mundo. Como foi isso?
Novaes: A nossa cultura, em geral, enxerga-os
de uma forma muito limitada. E não
olha as culturas indígenas pelo que
elas têm de mais importante. Por exemplo:
a organização social e política.
Entre os índios que vivem ainda na
força de sua tradição,
o chefe não manda em ninguém.
Ele é a pessoa que conhece a história,
conhece a cultura, as tradições,
e transmite isso para seu povo em cada situação.
É o grande mediador de conflitos, o
que fala melhor, e, por isso tudo, o que mais
sofre. E não dá ordens porque
não há delegação
de poder, e sem delegação de
poder não pode haver repressão,
e sem isso não pode haver repressão
de um grupo por outro grupo, ou de um indivíduo
por outro. Isso aponta na direção
das utopias, uma sociedade que não
precisa ter poder. E proporciona uma vivência
para nós quase inimagináveis:
alguém nascer e morrer sem receber
uma ordem sequer.
ABr: Se formos comparar...
Novaes: Nossa cultura tenta promover a democracia
da maioria e raramente consegue, enquanto
eles têm no dia-a-dia a democracia do
consenso. O índio, na força
de sua cultura, é um ser absolutamente
auto-suficiente. Sabe fazer tudo de que precisa
para viver – plantar, caçar, pescar,
sabe fazer sua casa, fazer seu instrumento,
fazer seus objetos de adorno, sua rede, sua
esteira, sua canoa. Nasce e morre sem depender
de ninguém para nada. Me impressionou
ver crianças que não apanham
por nada, ver o carinho para com elas, a liberdade
e a alegria delas. E, por fim, a informação
é aberta. O que um sabe todos podem
saber. Ninguém se apropria da informação
para transformar em poder. Conviver com isso,
ver que é concreto, mudou minha visão:
eu sei que outras coisas são possíveis.
É preciso que a nossa sociedade aprenda
a ver essas coisas.
ABr: E as duas outras características
– a ausência de informação
restrita e a autonomia? Mantêm-se?
Novaes: Eles [os xinguanos] estão no
ápice de um conflito entre os mais
velhos e os mais novos que é já
enunciado, mas não tem ainda desfecho.
Os velhos vêem com enorme temor o que
está acontecendo e sabem que a cultura
não vai sobreviver se os jovens não
tomarem outro caminho. Isso ainda não
se traduz em mudanças práticas,
por exemplo, na organização
social. Os chefes são instituídos
pelo caminho tradicional. Em quase todas essa
culturas, são escolhidos pela hereditariedade.
E isso não é questão
de privilégio: um chefe precisa ser
educado desde muito pequeno, precisa de convívio
permanente com o pai. Quando acontece alguma
perturbação nesse caminho, é
complicado. Quando os Villas-Boas [indigenistas
que fizeram contato com vários povos]
se aproximaram dos Kuikuro, nenhum Kuikuro
falava português. Eles conheciam o Nahu,
de pai nahukwá e mãe kuikuro.
Quando morreu o pai do Tabata e do Afukaká,
que ainda eram meninos, os Villas-Boas nomearam,
entre aspas, o Nahu chefe. Isso gerou conflitos
quando Tabata e Afukaká foram chegando
à idade adulta, porque eles eram herdeiros
tradicionais. Isso seguiu até que o
Nahu morreu. O filho dele, Jakalo, que é
kuikuro, é cacique hoje.
ABr: E quanto à auto-suficiência?
Novaes: Logo, logo, vai começar a ter
[implicações concretas]. Não
se sabe até quando os velhos vão
aceitar a postura dos jovens. Eles vão
perdendo a autonomia e interrompem um conhecimento,
uma habilidade. É o momento em que
o conflito se explicita, e vamos ver em que
direção ele se desdobra. Uma
esperança deles é que a documentação
em vídeo leve os jovens a querer saber
dos mitos, das lendas, dos formatos tradicionais.