07/08/2007 - No começo
deste mês a juventude indígena
do Alto Rio Negro, no Amazonas, protagonizou
um encontro em São Gabriel da Cachoeira
para buscar soluções para os
problemas que vem enfrentando. Os principais
temas debatidos foram Sexualidade, Doenças
Sexualmente Transmissíveis, Valorização
Cultural e Identidade, Direitos e Deveres,
Violência e Políticas Públicas.
O Congresso de Adolescente
e Jovens Indígenas de São Gabriel
da Cachoeira, no Amazonas, realizado na semana
passada, foi a primeira oportunidade para
que jovens e adolescentes da cidade e das
comunidades indígenas do Alto Rio Negro
pudessem discutir problemas e soluções
que afligem a juventude da região.
O congresso aconteceu nos dias primeiros três
dias de agosto e foi organizado pelo Movimento
de Estudantes Indígenas do Amazonas
(MEIAM).
Os principais temas debatidos
ao longo do encontro foram Sexualidade, Doenças
Sexualmente Transmissíveis (DST/AIDS),
Valorização Cultural e Identidade,
Direitos e Deveres, Violência, Políticas
Públicas. De acordo com o estudante
da etnia desana Délio Firmo Alves,
um dos coordenadores do evento, o congresso
surgiu a partir da urgente necessidade de
haver um espaço onde o jovem indígena
de São Gabriel da Cachoeira possa falar,
e ser ouvido, sobre os diversos problemas
que a juventude indígena vem sofrendo.
“Violência, alcoolismo, suicídio,
tudo isso vem atingindo a nós, jovens
indígenas. O poder público precisa
nos ouvir, também temos propostas para
a melhoria desse quadro social”, disse Firmo
Alves.
O público participante
foi dividido em delegações da
sede do município e das comunidades,
cujos representantes vieram de Assunção
do Içana, Taracuá, Iauaretê
e das regiões do Médio e Baixo
Rio Negro (Santa Izabel e Barcelos) e Rio
Negro acima. Dentre os convidados, estiveram
presentes representantes da Secretaria de
Justiça do Estado do Amazonas, Secretaria
de Estado da Juventude de Esporte e Lazer,
Fundação Nacional de Saúde
e da Coordenação Geral de Defesa
dos Direitos Indígenas, da Fundação
Nacional do Índio (Funai).
O Fundo das Nações
Unidas para a Infância e Adolescência
(Unicef), a Fundação Nacional
do Índio (Funai), a Federação
das Organizações Indígenas
do Rio Negro (Foirn), a Prefeitura Municipal
de São Gabriel da Cachoeira, o Instituto
Socioambiental (ISA), a Coordenação
das Organizações Indígenas
da Amazônia Brasileira (Coiab) e a Pastoral
da Juventude, apoiaram a realização
do evento.
Sexualidade, DST e AIDS.
De acordo com os jovens,
o foco principal das questões relacionadas
à sexualidade e às Doenças
Sexualmente Transmissíveis (DSTs) é
a falta de diálogo entre pais e filhos,
que acaba se tornando um agravante para diversos
problemas, como gravidez precoce e as próprias
DSTs. “É necessário que haja
mais diálogo na família para
que possamos receber orientações
nesta fase das nossas vidas”, afirma o estudante
Gilmar Henrique. De acordo com os jovens,
esses temas deveriam ser debatidos com mais
freqüência nas escolas, que muitas
vezes acabam por não dar a devida importância
ao tema.
“Ser ou não ser indígena”
Na temática “Valorização
Cultural e Identidade”, os jovens falaram
da questão do auto-reconhecimento de
ser ou não ser indígena. Alguns
deles destacaram que, por serem filhos de
pai branco e mãe indígena, sofrem
discriminação principalmente
em relação às políticas
afirmativas, como no acesso às chamadas
“cotas”. Os jovens questionaram sobre quem
teria mais direitos às cotas - se os
filhos de ambos pais indígenas ou um
jovem que se autodenomina indígena,
mesmo sendo filho de pai branco. Henrique
Vaz, administrador regional da Funai, explicou
que não é apenas uma questão
de ter mais ou menos direitos e sim de “autodeterminação”.
“Mesmo que a sociedade indígena rio-negrina
seja patrilinear, ou seja, o pai determina
a etnia dos filhos, se o jovem se autodeterminar
indígena, a Funai o reconhece como
tal e este passa a usufruir dessas políticas
afirmativas de igual modo àqueles que
são filhos de indígenas dos
dois lados”, afirmou Vaz. O administrador
lembrou que é importante que os pais
retirem a certidão de nascimento indígena
(emitida pela Funai), assim que as crianças
nascem, para evitar problemas futuros com
auto-reconhecimento.
Ainda na questão
de identidade, foi projetado um filme no Espaço
Público do ISA com o intuito dos jovens
conhecerem outros povos indígenas que
valorizam suas culturas. O filme “Das crianças
Ikpeng para o mundo” mostra as crianças
do povo Ikpeng, que vivem no Parque Indígena
do Xingu, no Mato Grosso, apresentando sua
aldeia para outras crianças do mundo.
No final da projeção os jovens
de São Gabriel da Cachoeira observaram
o quanto os Ikpeng ainda mantém viva
as suas tradições e, em contraposição,
lamentaram que a cultura deles venha se perdendo
ao longo dos anos. “Isso mostra o quanto perdemos
das nossas tradições e como
aquelas crianças Ikpeng têm orgulho
em mostrar os seus costumes. Precisamos aprender
com elas”, disse Soraia Barreto, estudante
indígena.
Direitos e Deveres
A presidente do Conselho
Tutelar de São Gabriel da Cachoeira,
Miriam de Souza, falou sobre o Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA) e da
importância dos jovens saberem o que
é e como usá-lo. Alguns dos
participantes questionaram os “choques” existentes
entre o Estatuto da Criança e o Estatuto
do Índio e perguntaram em qual lei
eles devem se basear quando quiserem se defender.
A representante Secretaria de Justiça
do Estado do Amazonas, Francisca Elizabete,
informou que os “choques” de fato existem
e que é preciso haver adequações
entre os dois estatutos. Ela também
informou que há uma discussão
em andamento e que cabe aos estados acharem
uma interface entre os estatutos, mas até
o momento não há nada de concreto.
A representante do Conselho
Tutelar relatou como vem trabalhando na assistência
ao jovem em risco social: “mesmo não
tendo orçamento para funcionar e com
uma extrema desorganização em
instâncias superiores, estamos trabalhando
com o que é possível”, disse
Souza. “Hoje não temos um centro que
possa receber o jovem que está necessitando
de acompanhamento médico e psicológico.
Já nos deparamos com situações
onde tivemos que levar crianças com
problemas para nossas casas por não
terem para onde ir”, denunciou.
Violência e Alcoolismo
Em relação
à violência e ao alcoolismo,
os jovens acreditam que os dois problemas
andam juntos e afirmaram que a falta de perspectivas
de futuro leva os jovens a enveredarem pelo
caminho das drogas e do alcoolismo. Eles descreveram
dois quadros sociais, o da cidade e o das
comunidades.
Na cidade: os participantes
do encontro disseram que muitos jovens terminam
o ensino médio em São Gabriel
da Cachoeira e não possuem condições
financeiras de ir à Manaus para fazer
um curso superior e acabam ficando ociosos
na cidade. Sem emprego ou perspectivas, se
entregam à bebida e às drogas
e, quando se dão conta, já estão
viciados. Gilmar Henrique apontou outro agravante
para o problema do alcoolismo, que é
a falta de fiscalização em bares
e casas de festas da cidade. “O jovem de São
Gabriel não tem ambientes sadios para
desenvolver seus talentos, conhecer coisas
novas, se informar, praticar esportes etc.
A única opção de divertimento
acaba sendo os bares e as casas de festas
onde não há a menor fiscalização
de venda de bebidas e entrada de menores”.
Foi lembrado também que, em São
Gabriel, existem leis e portarias que proíbem
a venda de bebida alcoólica para menores
e a entrada destes em casas noturnas. Porém
essas portarias não são respeitadas
pelos donos dos estabelecimentos e são
mal fiscalizadas pela polícia, Poder
Judiciário e promotoria pública.
O estudante também comentou sobre os
casos de suicídio que aconteceram nos
últimos dois anos no município
e disse que o ato de atentar contra a própria
vida é o limite do desespero de um
jovem sem perspectivas de futuro.
Outra situação
mostrada foi a dos jovens menores de idade
que comentem delitos e que ficam presos por
longos períodos na delegacia da polícia
civil da cidade. De acordo com Francisca Elizabete,
da secretaria de Justiça, essa situação
de reclusão é proibida por lei
e precisa ser resolvida com urgência.
Elizabete informou ainda que irá propor
um programa de “Liberdade Assistida” e de
“Tarefas Comunitárias” que será
destinado para esses jovens que cometem pequenos
delitos. Já os que cometem delitos
maiores devem ser levados, sob acompanhamento
do Juiz da Comarca, até uma unidade
detentora especializada. No Estado do Amazonas,
esse tipo de unidade só existe em Manaus.
A prostituição
também é outro problema social
presente na cidades, envolvendo jovens que
geralmente saem de suas comunidades para estudar.
Luiza Nascimento, representante da delegação
do médio e baixo Rio Negro, falou que
muitas jovens vão para as cidades de
Santa Izabel e Barcelos estudar e, ao não
encontrar emprego, acabam achando que a prostituição
é única forma de se manter na
cidade. “A impressão que temos é
que na nossa região não existe
poder público que nos ajude”, disse
a jovem.
Nas comunidades indígenas:
os jovens denunciaram a entrada ilegal e desenfreada
de bebida alcoólica nas comunidades.
Este fato traz muitas conseqüências,
principalmente casos de violência. A
bebida chega nas comunidades pelas embarcações
e lá são vendidas a preços
altos. “Uma garrafa de cachaça lá
na minha comunidade chega a R$ 50,00 e, mesmo
assim, as pessoas compram”, disse Zenaide
Menezes de Taracuá, no médio
rio Uaupés. “Há brigas entre
famílias e entre amigos, esses jovens
não se conformam somente com o nosso
caxiri, que é a nossa bebida tradicional”.
“Eles já chegam embriagados de cachaça
nas nossas festas e lá arrumam confusão".
Os jovens também
citaram que com a bebida eles acabam cometendo
crimes como estupros e roubos. No caso de
Iauaretê, no Alto Uaupés, um
grupo de adolescentes embriagados assaltou
um comércio da cidade em maio desse
ano. “Nunca havia acontecido um roubo tão
grande na nossa região; levaram comida,
roupas e até equipamento eletroeletrônico.
Lá a situação piora porque
não temos polícia ou conselho
tutelar para assistir a esses jovens que precisam
de ajuda” informou Denivaldo Sampaio, estudante
de Iauaretê. Ele disse ainda que tal
como em São Gabriel, Iauaretê
vem sofrendo com suicídios entre os
jovens.
Políticas Públicas
para a juventude
O congresso foi uma oportunidade
também para os jovens aprenderem mais
sobre os conceitos de cidadania, democracia
e controle social. Ouviram que o voto representa
um forte aliado quando se quer mudanças.
Aos poderes públicos presentes, como
a prefeitura municipal e a câmara de
vereadores, os jovens propuseram a criação
de uma Secretaria Municipal da Juventude,
que teria o objetivo de articular políticas
públicas voltada para os jovens indígenas
da cidade e das comunidades. “Queremos que
todas as propostas levantadas aqui, principalmente
a de criação da secretaria,
sejam acatadas pelas autoridades competentes,
sem falsas promessas”, informou Eliana Pedrosa,
coordenadora geral do MEIAM. Em ato público,
no último dia de encontro, os participantes
apresentaram um documento contendo as reivindicações
da juventude indígena do Rio Negro
para a sociedade e poderes públicos.
Délio Firmo Alves
avaliou que a participação das
delegações foi de extrema qualidade,
pois cada membro será um multiplicador,
no seu meio, das mensagens que ouviu no encontro.
Em relação à participação
dos convidados, o coordenador lamentou a ausência
do poder judiciário e da promotoria
pública da cidade durante os dias de
congresso. “Nós enviamos convite para
o poder judiciário e para a promotoria
pública da cidade, porque era de suma
importância que eles nos ouvissem, afinal
são eles próprios os defensores
dos nossos direitos e deveres. Lamentamos
muito por não terem vindo”, disse Firmo
Alves.
ISA, Andreza Andrade.