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NO CAMINHO DA COBRA DE PEDRA

Panorama Ambiental
São Paulo (SP) – Brasil
Abril de 2008

01/04/2008 Equipe tuyuka refaz a trajetória de origem de seu povo, descendo do Tiquié para São Gabriel da Cachoeira e dali seguindo para Iauaretê, no noroeste amazônico. Leia o relato do antropólogo Aloisio Cabalzar, do ISA, que participou da viagem.

Os Tuyuka embarcaram em uma viagem para ver de perto seus lugares de origem, situados ao longo dos rios Negro e Uaupés. Parte de um amplo esforço para fortalecer as vias de transmissão de seus conhecimentos, essa iniciativa gerou interesse nas comunidades por onde passou e perspectivas de pesquisa para a Escola Tuyuka. (Saiba mais sobre a escola).

As paisagens do Rio Negro, especialmente as ribeirinhas, estão repletas de sinais dos tempos da formação do mundo e de seus habitantes. São pedras no leito do rio ou em terra, corredeiras, serras ou montanhas rochosas isoladas, paranás, estirões... em todos esses locais há marcas da Gente da Transformação - os precursores da atual humanidade - onde desenharam ou deixaram sinais de seus toques, onde se sentaram, deitaram, pisaram...

Registros em vídeo e GPS

Os Tuyuka saíram de suas comunidades no Alto Rio Tiquié em dois botes de alumínio com motores de popa no dia 15 de fevereiro deste ano. Viajaram cinco conhecedores mais velhos (Henrique, Joanico, Sabino, Gire e Mandu), outros seis adultos (Joaquim, Antônio Rezende e Antônio Meira, Ernando, Reginaldo e Higino Tenório, que é também professor), cinco alunos (Bosco, Marcos, Odilon, Batista e Mauro). Desceram até São Gabriel da Cachoeira, no Rio Negro, onde se juntou à equipe o antropólogo do ISA, Aloisio Cabalzar.

Na cidade, hospedaram-se na maloca da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn). Prepararam a viagem rio acima e aproveitaram para conhecer o trecho do Rio Negro entre a Ilha de Duraka - em frente ao porto de Camanaus - e a cidade, acompanhados por dois velhos moradores, um de São Gabriel, outro de Camanaus, os srs Luiz Epitácio Coelho - Peixinho (88 anos) e Pedro Teodoro da Silva (83). Eles falaram dos nomes das ilhas e dos lugares, de onde vieram seus moradores, as festas e dabucuris de antigamente, os locais de colocação de cacuri e de piracema dos peixes, as relações dos Baré com os índios de rio acima, as misturas e a caboclagem do Rio Negro, as cobras grandes e suas brigas e movimentos.

Os alunos do (ensino médio da Escola Tuyuka) registraram a viagem, filmando e gravando as falas dos velhos, desenhando mapas de trechos mais importantes do rio e a localização dos pontos mencionados - muitos deles plotados com o uso de aparelho de GPS. De parada em parada, os cinco conhecedores contavam o que sabiam daquele local, o que ali se passou nos tempos da origem, como e quando se referem a estes lugares nas entoações cerimoniais e nos benzimentos de proteção e cura, fórmulas narrativas que refazem e revivem estas trajetórias originais. Alguns dos velhos tuyuka nunca tinham visto estes lugares, mas já os conheciam bem através do que transmitiram seus pais e avós.

Caranguejo e cuandu

No dia 21 partimos de São Gabriel da Cachoeira em barco da Funai, emprestado por quinze dias. As primeiras paradas foram em Mon¡k¡ro (pequena ilha a montante de São Gabriel), nas comunidades de Cabari, São Miguel e São Luiz, onde pernoitamos. Em Cabari há uma pedra alongada em forma de tronco que se estende até o porto, com vários desenhos em baixo relevo. Um deles é o remo de Yarigebo (Basebo em tukano), Deus da Alimentação, o criador dos cultivares das roças. Segundo o Sr. Miguel Fidelis (tukano de 77 anos), o nome correto de São Miguel é Coxa de Anta (Wek¡ ¡sebeto) e a serra mais conhecida por Cabari se chama mesmo serra de Jurupari. A serra é a base da paxiúba derrubada para fazer as flautas sagradas, proibidas à visão das mulheres, usadas na primeira iniciação dos meninos no tempo da origem.

São Luiz, onde passamos o dia 22 com os moradores arapaso Gentil e Ilton, é chamado Moruá-Ponta (Sumuapero ñoa em tuyuka) ou Ponta de Umbigo; próximo ao porto há uma ilha com o mesmo nome (Sumuapero n¡k¡rõ). Nessa área vimos a Casa do Caranguejo e uma corredeira perigosa no Rio Negro com o mesmo nome. Do outro lado do Rio Negro, com quase três quilômetros de largura nesse trecho, vimos a pedra onde apareceu o cuandu ou ouriço-cacheiro (Watoga). Caranguejo e cuandu são, ambos, seres hostis que tentaram impedir a subida da Gente da Transformação, que conseguiu, ainda assim, passar pelo fundo do rio.

Daí seguimos para a Ilha das Flores, onde o sr. Gaspar (baré de 83 anos) mostrou os locais importantes ao redor da comunidade. Disse que o nome Uaupés é equivocado, pois assim era chamado o povo que aí habitava, sendo Caiari o nome próprio do rio. O pernoite foi em Yauawira (arraia). Em cada comunidade, Higino Tenório, um dos fundadores da Escola Tuyuka e coordenador da viagem, fazia uma apresentação dos objetivos da viagem e informava sobre a Escola Tuyuka e sua maneira de trabalhar; depois pediam para os conhecedores da comunidade falarem sobre o nome original e as histórias do local; por último, os velhos tuyuka comentavam sobre estes lugares e acontecimentos e como são mencionados nas entoações cerimoniais, nas narrativas de origem e nos benzimentos tuyuka.

Itapinima

A equipe tuyuka foi subindo, parando em todos os locais importantes, como São Joaquim (Pamoyuti makãwi) ou Paraná do Tatu, que surgiu quando Deus da Transformação (Koamak¡) quis matar a Cobra Traíra (Dose pino), colocando aí uma armadilha de peixe chamada matapi; a Cobra se colocou no corpo do tatu e conseguiu fugir para o Rio Negro. Em Monte Alegre (Hop¥n¡k¡rõ), a Gente da Transformação fez seu primeiro cigarro como substância ritual.

Itapinima (¢tãworitiro), uma lage de pedra no meio do rio, é repleta de litografias gravadas quando a pedra ainda era mole pelas mulheres que haviam perdido as flautas sagradas para os homens. A maior parte dos desenhos estava submerso nesse dia, mas foram feitos alguns registros usando tecido de algodão e papel carbono amassado.

Sobre a Casa de Trovão, como explicou o sr. Quintino, morador desana da comunidade de mesmo nome. A Casa da Caixa da Noite (Naikoro makawi), onde a Gente da Transformação conseguiu a noite, pois antes era dia claro o tempo todo. Aí vimos a pedra que é a Caixa da Noite.

Em uma manhã de chuva os Tuyuka conversaram com moradores de Cunuri, entre eles o sr. Vitorino e seu filho Marcelo. Ali aconteceu na origem um dabucuri, festa de oferecimento de frutas silvestres entre a Gente da Transformação.

Ao redor do sítio do sr. Fortunato, chamado Zarabatana (Bupuw¡sero), há marcas na pedra do bocal desse instrumento de caça. É onde o Deus da Transformação (Pam¡ri Koamak£) matou a Cobra Tucano, Dase piro, com uma zarabatana. Em outra laje estão marcas de onde ele ficou em pé para soprar o dardo da zarabatana. No final do estirão dois quilômetros a montante há altas pedras na beira: é a casa da Cobra Tucano, de onde, tendo sido atingida, ainda conseguiu levantar vôo indo cair lá no Médio Rio Tiquié, na cachoeira Tucano.

A narrativa que deixou mais referências na paisagem deste trecho entre Cunuri e Zarabatana foi a de Dase pinõ (cobra-tucano). Em Cunuri, por exemplo, a montanha rochosa mais evidente é uma grande panela onde foram cozidos os ossos dessa cobra grande (chamada Kiput¡r¡).

Origem do caapi

A parada seguinte foi Uriri, onde está Diawi, lugar fundamental na trajetória de transformação. O sr. Antônio Silva, pira-tapuya, mostrou a marca da proa da canoa da transformação na pedra, onde a Gente da Transformação se sentou, onde tiraram um pedaço de folha de sororoca para fazer cigarro... Foi aí que a primeira mulher deu à luz a primeira criança, que, por sua vez, fez o primeiro dabucuri de frutas e deu origem às flautas sagradas. Aí também teve origem o caapi, bebida cerimonial para os povos Tukano. Do outro lado do rio, e fora da história da transformação, está o porto de Manduca Albuquerque, antigo Diretor dos Índios e patrão do Uaupés, conhecido por suas crueldades no início do século passado – ali estão as ruínas da casa de alvenaria que começara a construir, antes de ser morto por envenenamento.

A escala seguinte foi Matapi (B¡kawiko), situada no alto de uma ampla duna de areia na foz do lago Matapi, daí o nome da comunidade. Há várias histórias imbricadas nesse lugar. Dentro de um igarapé a jusante estão grandes pedras conhecidas como Maloca do Sol (muip¥wi), onde os filhos do Sol conseguiram recuperar as flautas sagradas das mulheres. Hoje as flautas estão escondidas numa ilha próxima à foz desse igarapé. Próximo, tem o lugar em que Deus Preguiçoso - Daderi Koamak£ - deixou uma grande onça para comer a Cobra Traíra (Dose pino), em vingança por ter engolido seu filho...

Depois fizemos uma rápida passagem por Tawa e Taracuá, onde o sr. João Duarte, tukano, nos mostrou os principais locais, destacando-se Menekõarawi, casa de uma cobra grande, extensa pedreira que vai do porto terra adentro, em cima da qual os missionários construíram a igreja e o prédio antigo da missão -, seguida por H•ab¡toawi, acima de Taracuá, origem de todas as espécies de lagartas. Essas lagartas são consideradas uma gente que sobe o rio a cada ciclo anual, fonte de doenças sazonais. Por isso os benzedores precisam fazer cerimônias, com dança dos velhos, promovendo a proteção contra essas doenças.

Buraco da Transformação

Chegamos em Ipanoré no dia 27; em Urubucuara, a montante das cachoeiras e corredeiras que impedem a navegação do Uaupés nessa parte, dia 28. Nos dois dias visitamos o Buraco da Transformação e um amplo conjunto de locais associados à transformação da humanidade. Todo o transporte entre a cidade de São Gabriel e o distrito de Iauaretê, principais centros urbanos do munícipio, precisa ser feito por terra nesse trecho de cinco quilômetros entre Ipanoré e Urubucuara.

Conhecido como cachoeira de Ipanoré, este trecho é constituído por uma série de desníveis no rio - o mais alto, Pino-Pino (Ñat¡di), tem cerca de três metros -, estreitos, canais, ilhas, praias, pontas de terra e de pedra, com vários locais para colocação de cacuris (armadilhas de pesca). Embora seja o local de origem dos Tukano, onde eles emergiram do mundo aquático para esta terra como humanidade, a ocupação atual é tariana. Os Tukano se deslocaram daí para o Rio Papuri e dali se dispersaram por toda a região. Os Tariana Raimundo (Ipanoré) e Tarcíso (Urubuquara) colaboram com os Tuyuka nestes dias.

Iauaretê, cidade indígena

A subida entre Urubuquara e Iauaretê foi feita em dois dias, parando em cada comunidade, com pernoite em Loiro, centro do trecho de predomínio arapaço. Em Iauaretê, a equipe tuyuka hospedou-se na missão salesiana, cujo diretor atual é o Padre Justino Rezende, tuyuka do alto Tiquié. Nos quatro dias de permanência nessa pequena cidade indígena, houve uma intensa programação: em cada manhã a refeição foi feita na casa comunitária de uma das vilas (São Miguel, Cruzeiro, Dom Pedro Massa e Aparecida), houve um dia de programação no colégio e uma festa final na grande maloca do Centro de Estudos e Revitalização das Culturas Indígenas de Iauaretê (Cercii), organizada pelos srs. Guilherme e Laureano Maia, ocasião em que os tuyuka dançaram Ikiga (inajá).

Os locais próximos de Iauaretê foram mostrados por Miguel de Lima e Adriano de Jesus (ambos são tariana). A montante de Urubuquara, a narrativa que tem maior número de referências geográficas é a dos Diroa, com seu ponto culminante na cachoeira de Iauaretê. De Opeduri (Campo Alto) para cima, está o lugar onde eles - os Diroa - cortaram a cabeça da Cobra-Arara, onde jogaram seus miolos para com isso fazer pariká, onde abriram o ânus do Diabo-sem-Cu. Para os Tuyuka, um local importante é Bearataro. Em Iauaretê, finalmente, há marcas de muitos episódios associados à história dos Diroa, mas também relativos à trajetória da transformação. Esse foi o ponto final na primeira etapa da viagem.

Foi um momento importante de reflexão para os Tuyuka, a respeito de sua origem e seus conhecimentos. Momento também para pensar a formação dos jovens. Nas palavras de Higino Tenório, foi um encontro entre os conhecimentos dos Tuyuka e dos moradores dessas comunidades sobre suas origens comuns, numa fonte que está sempre se renovando.

A Terra da Transformação

Os povos Tukano da Bacia do Rio Uaupés, entre eles os Tuyuka, consideram que chegaram em sua atual região, chamada por eles Terra da Transformação, provenientes do leste, subindo os grandes rios Amazonas e Negro. Toda a toponímia ribeirinha é conhecida em detalhes pelos benzedores e mestres de cerimônias, que os recitam nos grandes rituais - lembrando a origem do povo, os feitos e aprendizados acontecidos em cada Casa de Transformação -, ou mesmo em benzimentos cotidianos, usados para a proteção das pessoas. Ao escolher o nome de um recém-nascido, por exemplo, o kumu (benzedor) vai buscá-lo nas casas de transformação; dependendo do dom que o kumu queira atribuir à criança, seja de benzedor ou baya (mestre de cerimônia), há casas mais propícias para associar à alma de cada criança.

A narrativa de origem conta a subida da Cobra da Transformação, desde o Lago de Leite, passando por muitos locais, até a chegada na cachoeira Jurupari (em território colombiano), onde os Tuyuka contam que nasceram para a humanidade, transformaram-se. Essa narrativa é passada de geração em geração, e os locais citados e suas histórias são conhecidos mesmo por aqueles que nunca viajaram para longe de suas aldeias situadas no Alto Rio Tiquié.Wiseri Makañe Niromakañe - Casa de Transformação; Coleção Narradores Indígenas do Rio Negro, editada pela Foirn, já publicou oito versões de narrativas mitológicas dos povos indígenas do rio Negro e no final de 2007 ganhou prêmio do Ministério da Cultura.

A Escola Tuyuka, com apoio do projeto “Gestão dos conhecimentos para as futuras gerações tuyuka”, do Projetos Demonstrativos Povos Indígenas (PDPI) que teve início nesse ano, planejou três etapas para conhecer os locais mais importantes na trajetória de origem. A primeira viagem, que acaba de se realizar, foi feita entre a cidade de São Gabriel da Cachoeira e Iauaretê, situada no rio Uaupés. A segunda etapa, em 2009, será no trecho bastante encachoeirado entre Iauaretê e a cidade de Mitu, atual capital do departamento colombiano de Vaupés. A terceira e última, em 2010, será dali até Jurupari, voltando por terra, pelas cabeceiras do Papuri e descendo até chegar à foz do Inambu e varando para o Tiquié. Essa foi a rota realizada na ocupação do Tiquié, onde parte de sua população permanece hoje.

O projeto do PDPI prevê ainda um conjunto de atividades voltadas ao ensino-pesquisa-aprendizado de conhecimentos rituais especializados, desde a confecção de adornos e instrumentos, até os cantos e danças, narrativas e benzimentos, pintura corporal e outros temas relacionados. Busca a colaboração de especialistas tuyuka do Brasil e Colômbia e de outros povos aparentados, como os Barasana do Pirá-paraná, com quem os Tuyuka têm estreitado suas relações desde 2005.
ISA, Aloisio Cabalzar.

 
 

Fonte: ISA – Instituto Socioambiental
Assessoria de imprensa

 
 
 
 

 

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