06/04/2008
- Cerca de 40 representantes de povos indígenas,
comunidades tradicionais, agricultores familiares
e quilombolas estiveram reunidos em Luziânia
(GO), até a última quinta-feira, 3
de abril. Juntos, reivindicaram de representantes
do Ministério do Meio Ambiente e da Casa
Civil a realização de consultas públicas
presenciais nos estados, para permitir o debate
democrático e fundamentado sobre a o projeto
de lei de acesso e repartição de benefícios.
A oficina sobre o Anteprojeto
de Lei (APL) de Acesso e Repartição
de Benefícios, realizada pela Secretaria
de Biodiversidades e Florestas do Ministério
do Meio Ambiente (MMA) nos dias 1, 2 e 3 de abril,
visava a qualificar os representantes dos povos
e comunidades para responder a consulta pública
sobre o projeto de lei que trata do acesso aos recursos
genéticos e conhecimentos tradicionais associados
de povos indígenas, comunidades tradicionais,
quilombolas e agricultores tradicionais. Tal proposta
está, atualmente, restrita à internet
e o prazo da consulta pública termina no
próximo dia 13 de abril.
Participaram do evento representantes
dos povos indígenas Baré, Kaingang,
Manchineri, Yanomami, Tikuna, Kuntanawa, Xanenawa,
Hunikuin, de comunidades quilombolas das regiões
Nordeste e Sudeste, seringueiros, andirobeiras,
quebradeiras de coco, ervateiras, comunidades de
fundo de pasto, além de agricultores familiares
e outras comunidades tradicionais.
Descontentamento com o processo
de consulta e a proposta de APL
Durante o encontro, os representantes
manifestaram descontentamento com o processo de
consulta pública, que não ofereceu
condições mínimas para ouvir
os povos e comunidades que serão diretamente
impactados pelo APL. Os povos indígenas,
agricultores e comunidades tradicionais presentes
na oficina ressaltaram que diversos instrumentos
internacionais ratificados pelo Brasil, que garantem
a consulta prévia fundamentada, não
estão sendo devidamente respeitados, como
no caso da Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho, a Convenção
da Diversidade Cultural, a Declaração
das Nações Unidas sobre os Direitos
dos Povos Indígenas e, principalmente, o
Tratado Internacional de Recursos Fitogenéticos
para a Alimentação e Agricultura da
FAO e a Convenção da Biodiversidade,
cujos conteúdos são objeto do referido
anteprojeto. Esses instrumentos internacionais,
com força de lei no Brasil, garantem, aos
povos e comunidades citados, o direito de serem
consultados por meio de mecanismos que respeitem
as suas realidades socioculturais, o que uma consulta
pública por internet não faz.
Os participantes da oficina discutiram
alguns conceitos e propostas presentes no APL e
manifestaram, frente à complexidade do texto
e à linguagem excessivamente técnica,
o desejo de ver um processo mais amplo, com mais
tempo e, principalmente, precedido por oficinas
que introduzam de forma apropriada os conceitos
e o sistema de acesso e repartição
de benefícios presentes na proposta de lei.
Muitos não entendiam o porquê da pressa
do governo em aprovar um projeto que demorou cinco
anos para ser concluído, cujo teor não
é consenso nem dentro do governo e que não
conta com o pleno apoio de variados segmentos da
sociedade civil, entre eles o setor acadêmico.
Um dos pontos do APL discutidos
na reunião foi a separação
do sistema de gestão do acesso em dois: um
sistema para a biodiversidade e outro para biodiversidade
agrícola, o que também está
presente nas definições constantes
da proposta. Os participantes da oficina consideraram
a divisão arbitrária e se manifestaram
contrários à repartição
(tanto conceitual quanto sistêmica). O argumento
é que somente um sistema de acesso unificado,
sem divisões conceituais artificiais e com
efetivo controle social, poderia ser aceito.
A crítica à divisão
resulta do entendimento de que a biodiversidade
engloba a biodiversidade agrícola. Além
disso, a divisão artificial evidenciaria
o desconhecimento da realidade tecnológica
contemporânea, já que a biotecnologia
moderna (com técnicas de transferência
de material genético) permite transpor não
só os limites entre espécies, mas
também as finalidades de seus usos potenciais.
Um exemplo é a hipótese de se introduzir
genes de uma aranha (recurso da biodiversidade)
no genoma do algodão, com a intenção
de gerar fibras mais resistentes (objetivo agrícola).
Sobre este tema, sugeriu-se a inclusão do
Ministério do Desenvolvimento Agrário
(MDA) no processo de formulação da
lei, tendo em vista a atuação do órgão
na promoção da conservação
das variedades crioulas de povos e comunidades tradicionais,
objeto do APL.
Demandas encaminhadas para Casa
Civil e Ministério de Meio Ambiente
No último dia de debates,
os participantes apresentaram os resultados dos
grupos de trabalho, elencando demandas para Casa
Civil e MMA. Os representantes de povos indígenas,
quilombolas, agricultores e comunidades tradicionais
pediram que os temas do APL fossem discutidos em
consultas públicas presenciais nos estados,
custeadas pela União e dirigidas exclusivamente
a esses segmentos envolvidos (que não tiveram
a oportunidade, como o restante da sociedade, de
responder a consulta pela internet). A proposta
é que as consultas públicas presenciais
sejam precedidas por oficinas de qualificação
adequadas às realidades socioculturais (nas
mesoregiões de cada estado), nas quais se
debatam os temas de forma clara e acessível,
para subsidiar o aporte de sugestões desses
atores para o novo marco legal sobre acesso e repartição
de benefícios.
Reivindicou-se, ainda, a realização
de uma Conferência Nacional sobre Acesso e
Repartição de Benefícios do
Uso da Biodiversidade, em Brasília, para
consolidar as propostas das consultas estaduais.
Assim, com um processo ampliado de discussão,
será possível a efetiva compreensão
dos temas por parte dos povos, comunidades e agricultores
tradicionais, de forma a trazer legitimidade à
formulação do marco legal de acesso
e repartição de benefícios.
O representante da Casa Civil,
Jaime Oliveira, se sensibilizou com os apelos dos
representantes das comunidades e se comprometeu
a levar as demandas à próxima reunião
do grupo interministerial, coordenado pela Casa
Civil, que será realizada nesta segunda-feira
07 de abril, uma semana antes do prazo final da
consulta por internet.
Representação ao
Ministério Público Federal e COP-9
da Convenção da Biodiversidade
Os representantes de povos, agricultores
e comunidades tradicionais discutiram outras estratégias
de ação possíveis de serem
adotadas caso as demandas apresentadas a Casa Civil
e MMA não sensibilizem o governo e não
sejam plenamente atendidas. Foram debatidas alternativas
como a de realizar uma representação
no Ministério Público Federal, visando
à garantia do direito a consulta prévia
e fundamentada, prevista nos supracitados instrumentos
internacionais. Outra alternativa foi a de denunciar
o processo de exclusão destes atores sociais
na formulação da lei nos fóruns
internacionais que debatem o tema, como na COP-9
da Convenção da Biodiversidade, que
ocorrerá em maio deste ano, na Alemanha,
e em outros espaços, como na Conferência
Regional (América Latina e Caribe) da FAO,
em Brasília, na segunda quinzena de abril.
Tentativas de participação
O projeto pretende regular o acesso
a recursos genéticos e a conhecimentos tradicionais
de povos indígenas e comunidades locais,
bem como o direito de agricultores sobre acesso
e uso de sementes locais. Também regula atividades
de pesquisa, bioprospecção, direitos
de patentes, criação de novos impostos,
entre outros temas. O APL está em discussão
a portas fechadas na Casa Civil desde 2003 e, nesse
tempo, a sociedade civil organizada foi excluída
do processo, embora tenha solicitado várias
vezes transparência e espaço para integração
(saiba mais aqui).
Agora, os participantes da oficina
contam com a sensibilidade dos ministérios
que discutem o APL para terem atendido o direito
pleno de se envolver na formulação
da lei.
Espera-se que o grupo interministerial
escute o apelo desse conjunto da sociedade que foi
excluído - apesar de ter solicitado a oportunidade
de contribuir - e que compreende mais de 30 milhões
de pessoas, entre indígenas, agricultores
familiares, comunidades tradicionais e quilombolas.
Espera-se, também, que o governo se lembre
que esses guardiões de conhecimentos, práticas
e inovações associados ao uso sustentável
da biodiversidade - e cujo acesso por pesquisadores
e empresas o APL pretende regular - são os
grandes responsáveis pela conservação
da biodiversidade brasileira.
ISA, Henry de Novion.