09/07/2008
- O manejo dos peixes na Bacia do Rio Tiquié
foi o assunto do encontro realizado em Pari-Cachoeira,
entre 4 e 7 de junho, que reuniu pela primeira vez
organizações e comunidades daquele
rio, no noroeste amazônico, para tentar entender
como era e como é feito hoje o manejo e quais
as causas prováveis para a escassez de peixes.
Tema sensível na região
do Alto Rio Negro (AM), o peixe não é
só item básico na dieta dessas populações
– e de outras na bacia amazônica - mas também
uma referência sociocosmológica central
para os povos Tukano Orientais. Ao mesmo tempo,
há problemas crescentes em seu manejo, devido
a uma série de fatores que marcam sua história
recente, como a introdução de práticas
de pesca mais impactantes, crescimento populacional
das comunidades e dificuldades no manejo xamanístico.
Embora seja assunto de conversas cotidianas nas
comunidades e mesmo de reuniões e atividades
em algumas associações indígenas
do Rio Tiquié, essa foi a primeira vez que
todas as organizações e comunidades
da Bacia do Tiquié (veja no final do texto
a lista das catorze organizações e
comunidades participantes) se reuniram se entender
sobre o assunto.
O encontro, coordenado pela Atriart
(Associação das Tribos Indígenas
do Alto Rio Tiquié), com apoio da Acimet
(Associação das Comunidades Indígenas
do Médio Tiquié), Aeity (Associação
da Escola Indígena Tukano Yepa-Pirõ-Pora)
e ISA aconteceu entre 4 e 7 de junho em Pari-Cachoeira
e foi dividido em três partes: (1) como era
a situação dos peixes no Tiquié,
desde a chegada dos ascendentes dos moradores atuais
até o tempo da infância dos moradores
mais idosos de hoje, como eram feitas as pescarias,
como foram introduzidos novos instrumentos e práticas;
(2) a situação atual dos peixes, as
práticas de pesca e seu impacto; (3) as propostas
de manejo dos peixes no rio.
Depois de se colocarem em acordo
a respeito dos problemas graves que todos vêm
enfrentando na pesca – uma das principais fontes
de alimentos para as comunidades indígenas
- e suas causas, os participantes da reunião
formularam um conjunto de propostas para começar
a trabalhar de maneira coordenada.
Como os antigos pescavam
No primeiro dia do encontro, depois
das apresentações dos representantes
de cada associação e comunidade, foi
aberto um espaço para que cada um, especialmente
os mais velhos, fizesse um depoimento sobre como
a pesca era feita tempos atrás, como foram
mudando as práticas e instrumentos e como
está hoje. Contaram que o Tiquié foi
sendo povoado pelos grupos de descendência
atuais a partir do século XIX. Quando chegaram
havia muitos peixes. Essa foi uma das razões
da vinda de populações do Rio Papuri,
tanto Tukano, Desana e Tuyuka. Os Miriti-tapuya
já estavam no Médio Tiquié.
O depoimento do professor Alberto
Pimentel, tukano de Bela Vista é esclarecedor:
“Antes morava pouca gente, pescava-se mais com caniço
e isca de minhoca e gafanhoto; nossos pais pescavam
com arco e flecha, pegando alguns peixes. Antigamente
faziam cercado com matapi, mas não deixavam
todo o tempo, só às vezes. Não
usavam tantos anzóis; para daguiru, só
uns 10 ou 15, hoje são centenas. Pescavam
mais regulado, de dia ou de noite, dependendo de
cada um; tinguijavam pouco, só nos igarapés;
não tinham lanterna, hoje existem até
com cinco pilhas, alcança lá no fundo;
pescavam para quinhampira, mojeca, moqueavam pouco.
Na piracema, só pegavam com puçá,
hoje é com malhadeira. Quando apareceram
as malhadeiras, cada um pegava até 300 quilos
de peixe com esse instrumento novo na região.
Foi assim que começou a escassear...”
Rafael Castro, presidente da Aassociação
de Pari-Cachoeira disse que as malhadeiras apareceram
no início dos anos 1970. “Hoje há
malhas de cinco a seis metros de altura, facilmente
encontradas no comércio de São Gabriel
da Cachoeira, que não deixam passar nenhum
peixe, e são usadas também durante
as piracemas.
Luiz Lana, liderança desana
de São João, Médio Tiquié,
contou que antigamente seu povo vivia de forma diferente,
pescava pouco e caçavam mais. Antigamente
havia ainda muito peixe, segundo ele. “Pessoal colocava
cercado de pari com cupim e pegavam peixe com puçá;
tinguijavam, mas faziam benzimentos para tirar o
veneno e transformavam o lugar em lago de leite.
Meu pai só pescava alguns peixes, dizia que
fazia assim para não acabar. Para fazer o
benzimento de primeiro banho em uma criança,
só havia uma pessoa preparada para fazê-lo
na maloca. Hoje qualquer um quer fazer tais benzimentos,
o que vem acontecendo depois que os missionários
dividiram as famílias em casas separadas.
Hoje, os pescadores não fazem mais cacuri,
matapis e outros instrumentos que nossos avós
utilizavam, só pensam em malhadeiras. É
preciso pesquisar como nossos avós pescavam,
para fazer como eles faziam e não acabar
com os peixes.”
Entre as causas, o uso excessivo
de malhadeiras
Muitos moradores do Rio Tiquié
atribuem parte do problema atual de escassez de
peixe ao uso inadequado de benzimentos para proteger
o recém-nascido em seu primeiro banho no
rio. Segundo tradição dos povos Tukano
Orientais, quando uma criança nasce, passa
dois ou três dias em resguardo em casa com
seus pais, acompanhados por um benzedor (kumu).
Ele procede à proteção dos
três, por meio de benzimentos do ambiente
e dos alimentos, traz um espírito para a
criança atribuindo-lhe um nome e, por fim,
benze breu para cercá-la em seu primeiro
banho. O rio é habitado por seres (wai-masã,
relacionados aos peixes e que mantêm com as
pessoas relações tensas e precisam
ser permanentemente mediadas pelos benzedores e
pajés) que podem atacar ou roubar a vida
do recém-nascido, por isso é preciso
protegê-lo. Há as maneiras adequadas
de fazê-lo, mas algumas pessoas tentam benzer
sem saber, espantam e afugentam espiritualmente
os peixes, que se reflete na produção
da pesca.
Clemente Azevedo, da comunidade
São José, relatou que seus ascendentes
foram os primeiros a chegar no Médio Tiquié
e naquele tempo não conheciam timbó,
só surgiu depois. Seu pai contou que houve
um tempo em que usaram muito timbó, tanto
nos igarapés quanto no rio. Com o aumento
da população, o problema da pesca
se agravou.
Vicente Azevedo, coordenador da
Escola Tukano Yupuri, complementou dizendo que quando
era criança o pessoal começou a cercar
com pari os paus caídos nas beiras do rio
e colocavam timbó. Quando o rio estava cheio,
cercavam a foz dos igarapés e tinguijavam
Quando secava, pegavam muito. Hoje não fazem
mais isso.
A respeito de tinguijamentos passados,
Avelino Neri, de Jabuti, no Alto Tiquié,
relatou que quando era criança (há
cerca de 50 anos), tinguijaram o Rio Tiquié
inteiro, e morreram muito peixes. Tinguijavam também
o poço da cachoeira Caruru. Foi assim que
os peixes começaram a acabar.
Domingos Brandão, de Pari-Cachoeira,
contou que o chefe da maloca não pescava,
tampouco todos os homens iam na pescaria, só
alguns faziam esse trabalho, de acordo com a liderança
da maloca. Na cachoeira, colocavam matapis e cacuris
no inverno, para todos comerem os peixes ali apresados.
Quando tinguijavam faziam benzimento para limpar
o veneno da água.
Essas práticas começaram
a se perder com a chegada dos missionários
e a escolarização, explicou Manuel
Azevedo, presidente da Acimet, Protazio Lopez, da
AATIZOT (Tiquié colombiano) reiterou os fatores
que estão estragando os peixes: benzimentos
mal-feitos para dar banho em criança recém-nascida;
pesca noturna com lanterna de forma exagerada (a
noite inteira); desrespeito aos lugares sagrados
onde não se poderia pescar.
Grupos de trabalho propõem
soluções de manejo
No segundo dia de encontro, foram
formados seis grupos de trabalho, definidos conforme
o trecho de rio (médio entre Serra de Mucura
e São Francisco – Acime, Aeity, OIDS, 3TIC;
médio entre Maracajá e Pari-Cachoeira
– OIDS, OIBV, Cipac, Amim; alto entre São
Domingos e Caruru – Atriart, Aeitypp; alto acima
de Caruru até as cabeceiras – Aeitu, Aatizot;
igarapé Castanha – ACirc; e igarapé
Umari – Aciru) para discutir a situação
atual dos peixes, da pesca e seus problemas. Muitas
causas que redundaram na redução das
populações de peixes foram mencionadas
e discutidas, ficando bem caracterizada a necessidade
de se definir e implementar formas partilhadas,
entre as associações e comunidades,
de manejo dos peixes.
No terceiro dia, os mesmos grupos
de trabalho voltaram a se reunir, dessa vez para
elaborar propostas e recomendações
de manejo dos peixes, algumas mais severas, outras
mais viáveis e graduais. Seguem as principais
:
Timbó: as propostas variaram
entre sua completa proibição até
o uso somente em lagos pequenos e isolados do rio,
com a condição de se fazer o repovoamento
posterior com outros peixes;
Pesca na piracema: proibir o uso de malhadeira;
não colocar malhadeiras antes da desova dos
peixes; usar apenas puçá; evitar passar
com motores durante a piracema;
Malhadeiras: usar de forma consciente; proibir uso
de tramas mais finas (um ou dois dedos);
Puçanga (substâncias, em geral partes
de plantas, usadas para atrair peixe): controlar
ou evitar o uso, tanto na pesca quanto na caça;
usar somente antes de pescaria para consumo comunitário
(wayuri);
Lixo: todas as associações e instituições
devem cuidar adequadamente de seu lixo; pilhas devem
ser recolhidas e enterradas em local afastado; não
jogar animais mortos no rio; dar destino adequado
especialmente para pilhas, plásticos, vasilhames
de óleo lubrificante, óleo queimado,
malhas velhas de nylon, vidro e isopor;
Áreas de Pesca: acessar áreas de pesca
de outras comunidades somente após autorização
de suas lideranças; respeitar tais limites
conforme indicado por algumas associações;
colocação de lixeiras nas comunidades
e embarcações;
Lugares Sagrados: não pescar nesses locais,
respeitá-los; fazer rituais para preservar
os lugares sagrados, convidando os conhecedores
dos benzimentos;
Rituais e cerimônias para regular as relações
com os peixes: fazer cerimônia ritual para
benzer e fazer aumentar os peixes; fazer intercâmbio
entre conhecedores;
Não estragar locais de desova de daguirus
e traíras;
Valorizar os instrumentos e práticas indígenas
de pesca.
Além dessas, também foram defendidas
outras idéias como arborizar locais desmatados
para evitar erosão; regular o acesso dos
Hupda ao rio e suas formas de pescaria; proibir
o mergulho; não derrubar árvores frutíferas
na beira do rio; respeitar os lagos de reserva;
proibir usar feixes de anzóis sem isca; proibir
bateção e arrastão; e reunir-se
duas vezes ao ano para avaliar o manejo ambiental.
Ao final do encontro, foram definidos
um plano e agenda de trabalho. Cada associação,
especialmente aquelas em que a discussão
ainda está em fase inicial, vai debater com
suas comunidades, aprofundar a pesquisa sobre a
história de relações com os
peixes e os problemas atuais, e as propostas mais
apropriadas de manejo. No começo de novembro
será realizado o segundo encontro entre todas
as associações, novamente em Pari-Cachoeira.
Até lá, a Escola Tukano Yupuri ficou
incumbida de transcrever os depoimentos e discussões
ocorridos nesse encontro, para edição
e publicação para ampla divulgação
no Tiquié, com versões em tukano,
tuyuka e português.
Associações revelam
o que já fazem em relação ao
manejo
Durante o encontro, algumas associações
tiveram tempo para expor suas atividades relacionadas
ao manejo dos peixes. Uma delas está sendo
desenvolvida pela Acimet e Aeity desde 2005, com
a elaboração e implementação
de um plano conjunto de manejo dos peixes em um
extenso trecho do Médio Tiquié. Foram
realizadas várias oficinas entre as comunidades,
elaboradas algumas propostas de manejo com as comunidades,
visando um maior cuidado com o rio e os peixes,
de modo que se possa garantir essa importante fonte
de alimentos e, ao mesmo tempo, seu equilíbrio
e reprodução. Nessas duas associações
foram criados grupos de trabalho com representantes
de cada povoado e se iniciou uma experiência
com os agentes indígenas de manejo ambiental,
que estão monitorando o manejo dos peixes
nas áreas de suas comunidades e desenvolvendo
pesquisas sobre a produção da pesca.
Essa pesquisa tem o objetivo de chegar a indicadores
de produção da pesca, que possam servir
para avaliar anualmente os resultados das medidas
de manejo.
No que diz respeito às
áreas de uso de cada comunidade, as associadas
à Acimet decidiram marcar com placas de madeira
o limite entre elas, deixando claro para os pescadores
de outras partes a quem devem pedir permissão
para pescar. Essa é uma área com muitos
lagos e igapós, com maior abundância
de peixe e, por isso, mais acessada por pescadores
de outras comunidades rio acima. Além disso,
plaquearam seis lagos que já foram muito
explorados, e que pretendem reservar por três
anos.
No Alto Tiquié, a discussão do manejo
dos peixes está acontecendo desde 2005 no
âmbito da Canoa (Cooperação
e Aliança no Noroeste Amazônico), que
é uma coordenação entre associações
da parte brasileira e colombiana do rio, para discutir
manejo, não só dos peixes, mas de
outros recursos que usam em comum, como os caranazais.
A discussão aí passa principalmente
pela questão dos conhecimentos, a formação
dos jovens, sua iniciação, o manejo
xamânico cerimonial. A escassez de peixes
e de outras fontes de alimentação
e vida para as pessoas é atribuída,
em termos gerais, “ao abandono de conhecimentos
por causa da educação missionária
(que predominou durante a maior parte do século
XX), por essa razão não estão
desenvolvendo as práticas culturais, para
prevenção das doenças e manejo
do meio ambiente.”
A Aatizot (Tiquié colombiano)
indicou como principais problemas: o desrespeito
às normas tradicionais de uso dos recursos;
a não realização dos rituais
sazonais; o desrespeito aos lugares sagrados, com
apoio dos benzedores, que transformam lugares sagrados
em lugares de consumo; os estragos que prejudicam
os locais de piracema; o crescimento da população,
com demasiada pressão sobre os recursos do
meio ambiente; uso de artes de pesca não
tradicionais; destruição das beiras
dos rios, com a derrubada de frutíferas que
são alimentos dos peixes; falta de controle,
ninguém assume responsabilidades – as pessoas
não fazem caso; mal uso de timbó;
falta de normas para a pesca na piracema; falta
de acordos de jurisdição territorial.
Participaram
do encontro os coordenadores de catorze associações
(Associação das Comunidades Indígenas
do Médio Tiquié - Acimet, Organização
Indígena de Desenvolvimento Sustentável
- OIDS, Associação das Comunidade
Indígenas do Rio Castanha - Acirs, Associação
Três Tribos Indígenas do Igarapé
Cucura - 3TIC, Associação das Comunidades
Indígenas do Rio Umari - Aciru, Organização
Indígena de Bela Vista - OIBV, Comunidade
Indígena de Pari-Cachoeira - Cipac, Associação
das Tribos Indígenas do Alto Rio Tiquié
- Atriart, Associacion de Autoridades Tradicionales
Indígenas de la Zona Tiquié - Aatizot,
Associação da Escola Indígena
Tukano Yupuri - Aeity, Associação
da Escola Indígena Tukano Yepa-Pirõ-Pora
- Aeitypp, Associação da Escola Indígena
Utapinopona Tuyuka - Aeitu, Coordenação
das Organizações Indígenas
do Tiquié e Uaupés Abaixo - Coitua,
Associação das Mulheres Indígenas
de Maracajá - Amim), incluindo representação
da parte colombiana do rio, 35 comunidades com seus
capitães, e representantes do ISA, num total
de 110 participantes.
ISA, Aloisio Cabalzar.