21 de Setembro de 2008 - Alex
Rodrigues - Repórter da Agência Brasil
- Valter Campanato/Abr - Brasília - O ministro
da Secretaria de Assuntos
Estratégicos, Mangabeira Unger, concede entrevista
à Agência Brasil
Brasília - Na última parte da entrevista
concedida à Agência Brasil, o ministro
de Assuntos Extraordiários, Mangabeira Unger,
explica as medidas propostas no Plano Amazônia
Sustentável (PAS) para resolver o problema
fundiário na região.
Segundo ele, seriam organizadas
e regularizadas propriedades abaixo de 1500 hectares,
criando condições para que o Estado
brasileiro retome as áreas ilegalmente ocupadas
acima de 2500 hectares.
Numa primeira fase, propriedades
entre 1500 e 2500 hectares "ficariam em um
limbo", não sendo retomadas, mas também
não seriam regularizadas.
A conseqüência disso,
na prática é que seria construído
um modelo econômico e social que privilegia
o pequeno e o médio produtor, resistindo
às tendências de concentração
das propriedades, predominante durante toda a história
do país.
"Seria absurdo caracterizar
isso como favorecimento à grilagem. Pelo
contrário. Estamos falando de um ato de justiça
histórica que finalmente criará condições
para tornar a preservação ambiental
e a produção sustentável mais
proveitosa do que o saque".
Agência Brasil: Qual a real
dimensão do problema fundiário na
Amazônia?
Mangabeira Unger: De todos os problemas locais,
que são vários, o maior é o
da regularização fundiária.
Menos de 4% das terras em mãos de particulares
na Amazônia têm sua situação
jurídica esclarecida. Há um caos fundiário
que resulta em males enormes, suscitando a violência,
consagrando a grilagem e tornando o saque mais proveitoso
do que a preservação e a produção.
Ninguém vai investir em preservação
ou em produzir se não confia na continuidade
de seu controle sobre a terra. Toda a população
da Amazônia se sente chantageada, já
que sua base física não está
segura, estando sujeita ao vaivém das pressões
econômicas. Temos que acabar com isso.
ABr: E como fazer isso?
Mangabeira: Estou trabalhando com os ministros que
compõem a Comissão Interministerial
de gestão do Plano Amazônia Sustentável
(PAS) e com os nove governadores amazônidas
[da região] para desdobrar o plano em iniciativas
concretas. Já há um consenso de que
a prioridade na região é resolver
o problema fundiário, sem o que não
conseguiremos avançar em nenhum dos outros
eixos.
ABr: Que outros eixos, ou problemas,
seriam esses?
Mangabeira: Os eixos escolhidos para esse desdobramento
são a regularização fundiária
e o zoneamento ecológico e econômico
regional. O segundo é o combate ao desmatamento
à partir da construção de um
regime de leis praticáveis que permitam que,
preservada, a floresta tenha mais valor que derrubada.
O terceiro eixo é assegurar alternativas
ambientalmente seguras e economicamente viáveis
às populações de pequenos produtores
que atuam na zona de transição entre
a floresta e o Cerrado. O quarto eixo é a
reconstrução da agricultura brasileira
na Amazônia Legal e no Cerrado, democratizando-a
e agregando-lhe valor. O quinto eixo é o
regime de incentivos à criação
de pólos industriais. Há ainda as
medidas para o transporte multimodal, para que superemos
o isolamento amazônico. Por fim, tratamos
também de investimentos em ciência,
capacitação e ensino. Queremos identificar
algumas microrregiões onde possamos adensar
[implementar] essas iniciativas.
ABr: A “reinvenção
da agricultura” e a instalação de
pólos industrias na Amazônia com certeza
provocarão grande polêmica.
Mangabeira: Estamos convictos de que podemos dobrar
a área atualmente cultivada e triplicar nosso
produto agrícola sem tocar em uma única
árvore. Quanto aos pólos industriais,
na Amazônia florestada seriam instaladas indústrias
capazes de transformar produtos madeireiros e não-madeireiros,
produzindo tecnologias apropriadas ao manejo sustentável.
Já na região amazônica de Cerrado
seriam instaladas indústrias que agreguem
valor à transformação de produtos
agrícolas e minerais.
ABr: Voltando à regularização
fundiária, o senhor chegou a propor ao presidente
Lula a criação de uma nova autarquia
federal que cuidasse exclusivamente do tema na Amazônia.
Posteriormente, o senhor disse ter sido convencido
de que havia outra opção melhor. Em
que ponto está essa discussão?
Mangabeira: Havia duas teses iniciais. Uma era reforçarmos
o Incra [Instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária] com mais recursos financeiros
e humanos para que ele mesmo, em colaboração
com os institutos de terra estaduais, fizesse a
regularização. A segunda sugestão,
apresentada por mim, era estabelecer uma autarquia
diretamente ligada à Presidência da
República que, também em colaboração
com os governos estaduais, cuidasse do tema. Na
penúltima quinta-feira [11], governadores
e ministros chegamos a um consenso sobre como resolver
esse problema.
ABr: A criação de
uma agência “enxuta”, ao invés da autarquia
que o senhor havia sugerido?
Mangabeira: Sim. Um defeito da minha sugestão
é que demoraria tempo para criar, dotar dos
recursos humanos necessários e colocar em
funcionamento uma autarquia como a que eu propunha.
Durante a discussão com os governadores surgiu
a sugestão de que organizemos uma entidade
leve e enxuta que trabalhe em parceria com os estados
fazendo a regularização fundária.
Essa agência funcionaria nos moldes do Inmetro
[Instituto Nacional de Metrologia, Normalização
e Qualidade Industrial]. Os governadores me convenceram
de que esta sugestão é melhor que
a minha.
ABr: Mas o Inmetro é uma
autarquia vinculada Ministério do Desenvolvimento,
Indústria e Comércio Exterior.
Mangabeira: Há ainda certas sutilezas jurídicas
que precisam ser discutidas. Pelo direito público
brasileiro uma agência tem que ser ou uma
autarquia ou uma fundação pública.
Provavelmente seria uma autarquia, mas de natureza
diferente da que eu havia sugerido anteriormente.
Ela não faria o trabalho na base, que seria
realizado pelos estados. A função
desse órgão seria coordenar, apoiar,
monitorar e, em algumas circunstâncias, transferir
terras públicas para os estados. Como nenhuma
dessas tarefas envolvem a execução
direta da regularização, ela não
exigiria grande estrutura humana ou financeira,
mas sim uma enorme capacidade de gestão.
ABr: O senhor então está
convencido de que o Incra, da forma como está
organizado hoje, não daria conta de resolver
o problema da legalização das propriedades
na Amazônia?
Mangabeira: O Incra tem responsabilidades nacionais
e, ao longo de sua trajetória, seu foco principal
se tornou a reforma agrária e a política
de assentamentos e não a regularização
fundiária. Como temos pressa para encontrar
uma solução para o problema, me pareceu
que precisamos de uma entidade que cuide somente
da regularização fundiária.
Também já há consenso de que
só vamos solucionar o problema dando um papel
central aos estados e aos seus institutos de terra.
O governo federal não vai conseguir resolver
esse problema sozinho.
ABr: Então basta criar
um novo órgão para solucionar um problema
que se arrasta há tanto tempo?
Mangabeira: Não. A solução
contempla pelo menos quatro componentes, sendo que
o mais importante deles é a simplificação
das leis, das regras e dos procedimentos de regularização
fundiária na Amazônia. Isso é
um consenso. Independente de quem seja o agente
institucional responsável por regularizar
a posse das terras, nenhuma medida vai resolver
o problema se não mudarmos as leis. Há
um emaranhado de regras que impedem a regularização
fundiária. Esse é, de longe, o aspecto
mais importante da discussão e pensamos em
sugerir mudanças em três níveis,
feitas de uma só vez.
ABr: Que mudanças seriam
essas?
Mangabeira: Precisamos saber quem são os
titulares das terras, esclarecendo inclusive quando
proprietário é o governo federal,
o estadual ou o municipal. Sequer isso está
claro em grande parte do território amazônico.
Depois temos que acelerar a legalização
das posses inseguras, resolvendo o problema fundiário
de forma sistêmica. Não se consegue
regularizar uma propriedade sem resolver os problemas
fundiários de todas as propriedades circundantes.
Também temos que ordenar as medidas administrativas
e os recursos judiciais sem ferir o direito constitucional
de alguém recorrer à Justiça
quando se sentir prejudicado. Hoje, quando um território
está em vias de ser regularizado, alguém
recorre a um juiz e consegue uma liminar que paralisa
todo o processo. Algumas normas de georeferenciamento
também têm que ser revistas, já
que o tornam ineficazes.
ABr: Quais os prováveis
efeitos da aplicação dessas medidas?
Mangabeira: Organizaríamos a regularização
de propriedades abaixo de 1500 hectares, criando
condições para que o Estado brasileiro
retome as áreas ilegalmente ocupadas acima
de 2500 hectares. Numa primeira fase, propriedades
entre 1500 e 2500 hectares ficariam em um limbo,
não sendo retomadas, mas também não
seriam regularizadas. A consequência prática
é que iremos construir um modelo econômico
e social que privilegia o pequeno e o médio
produtor, resistindo às tendências
de concentração das propriedades,
predominante durante toda a nossa história.
Seria absurdo caracterizar isso como favorecimento
à grilagem. Pelo contrário. Estamos
falando de um ato de justiça histórica
que finalmente criará condições
para tornar a preservação ambiental
e a produção sustentável mais
proveitosa do que o saque.
ABr: Durante sua primeira viagem
à região amazônica, em janeiro
deste ano, antes mesmo de assumir a coordenadoria
do Plano Amazônia Sustentável (PAS),
o senhor discutiu com os governadores locais algumas
propostas de desenvolvimento econômico para
a região. Na ocasião, o senhor já
destacava a importância de que as intenções
fossem transformadas em ações concretas
para engajar a sociedade. De lá para cá,
o senhor assumiu outras atribuições
e passou a apresentar propostas para a estratégia
de defesa nacional, para a educação
e até mesmo para políticas sociais
do governo. Quantas dessas sugestões já
foram colocadas em prática e quais seus efeitos?
Mangabeira: Inicialmente, ao assumir a Secretaria
de Assuntos Estratégicos, eu apenas formularia
um projeto conceitual a respeito do futuro. Só
que eu concluí que se fizesse apenas isso,
tudo ficaria apenas no papel. Então, reorientei
meu trabalho para a definição de uma
série de iniciativas que encarnassem um novo
modelo de desenvolvimento e que devem ser construídas
em colaboração com os demais ministros,
governadores e com a sociedade. Em um segundo momento,
recebi do governo responsabilidades mais concretas
em relação à Amazônia
[a coordenadoria do PAS] e à Defesa [a coordenadoria
do comitê interministerial responsável
por elaborar o Plano Estratégico de Defesa
Nacional]. Minha pasta não tem nenhum recurso
orçamentário, nenhum poder normativo.
Eu não posso baixar portarias. Tudo que eu
posso fazer é propor e colaborar. É
isso que eu estou fazendo. Algumas dessas iniciativas
estão mais próximas de serem implementadas
do que outras, mas todas compõem um ideário
de reconstrução do nosso modelo de
desenvolvimento. Minha grande aflição
é ver essa dinâmica iniciada.