22/09/2008
- Considerado um dos municípios mais extensos
e indígenas do país, no extremo noroeste
da Amazônia, São Gabriel está
elaborando agora planos diretores regionais complementares
à lei aprovada pela Câmara Municipal
em novembro de 2006.
Aprovado em 21 novembro de 2006
pela Câmara Municipal de São Gabriel
da Cachoeira, o Plano Diretor Participativo do município
de São Gabriel da Cachoeira, entra agora
na fase de confecção dos planos diretores
regionais. Construído com a participação
de diversos setores da sociedade local, como lideranças
indígenas, moradores da cidade, associações
de bairro, representantes da prefeitura, do governo
federal, do Exército e de entidades civis,
o Plano Diretor inovou ao descentralizar o planejamento.
(Saiba mais sobre o plano). Assim, de abril a agosto
deste ano, as Terras Indígenas do município
elaboraram seus planos, regularizando em âmbito
municipal os dispositivos da Convenção
169 da Organização Internacional do
Trabalho, OIT, tratado internacional ratificado
pelo Brasil em 2003.
De acordo com a Convenção
169, qualquer plano, projeto ou política
governamental que afete os direitos coletivos dos
povos indígenas sobre suas terras, recursos
ou cultura só poderá ser executado
se houver um processo prévio de consulta
aos povos interessados. Ao regulamentar o mecanismo
de consulta prévia em âmbito municipal,
São Gabriel da Cachoeira se torna o primeiro
município brasileiro a abrir portas para
a integral implementação da Convenção
em território nacional. (Saiba mais sobre
a Convenção 169).
Terceiro maior município
do Brasil em extensão territorial, São
Gabriel da Cachoeira, no noroeste amazônico,
se caracteriza por ter a grande maioria de sua população
formada por povos indígenas pertencentes
a 23 grupos étnicos. Praticamente 90% de
sua área está dentro das Terras Indígenas
Alto Rio Negro, Balaio, Médio Rio Negro I
e II, em parte das terras Yanomami, Rio Téa,
e Marabitanas-Cué Cué em fase de demarcação.
Além de outras sobreposições
territoriais com Unidades de Conservação
(Parque Nacional do Pico da Neblina e Reserva Biológica
do Morro dos Seis Lagos) e glebas militares, a região
faz fronteira com a Colômbia e Venezuela,
o que a torna de extrema importância na geopolítica
do País. Sua biodiversidade é formada
por um rico moisaico de paisagens que determina,
em grande parte, a forma de distribuição
da população e o manejo dos recursos
naturais. Portanto, a soma de todos esses elementos,
orientou a elaboração do Plano Diretor
Municipal que se tornou único no Brasil por
respeitar territórios indígenas e
a sociodiversidade da região.
A descentralização
municipal, de acordo com o plano, ocorre com a criação
de seis regiões administrativas (em substituição
aos antigos distritos), cada uma com perímetro
delimitado. São elas: Região Administrativa
Hiniáli, Região Administrativa Baixo
Uaupés e Tiquié, Região Administrativa
Alto Rio Negro e Xié, Região Administrativa
Médio e Alto Rio Uaupés e Papuri,
Região Administrativa Táwa. A criação
das regiões inspirou-se na divisão
territorial que a Foirn-Federação
das Organizações Indígenas
do Rio Negro, utiliza para gerir as Terras Indígenas,
por meio das cinco sub-regiões representadas
pelas coordenadorias regionais. Cada sub-região
corresponde aos grandes complexos étnico-culturais
pertencentes às cinco calhas dos principais
rios e afluentes da região. Portanto, com
exceção da sede urbana do município,
as regiões administrativas coincidem com
os territórios das coordenadorias da Foirn.
Durante a elaboração do Plano Diretor
chegou-se a conclusão que a experiência
e as conquistas que essa estrutura do movimento
indígena já alcançou facilitariam
a criação e a implementação
das regiões administrativas. Com as devidas
adaptações, claro, para assim assumir
a tarefa de planejar e gerir os territórios
indígenas que correspondem às cinco
novas áreas municipais.
De acordo com a Lei Municipal
nº 209, cada região administrativa deve
elaborar o seu Plano Diretor Regional-PDR. Os PDRs
serão os planos de vida das comunidades,
onde poderão discutir a governança
indígena sobre seus próprios territórios,
planejando o uso, ocupação, estabelecendo
regras e planos para o manejo de recursos naturais
e prioridades de investimentos públicos.
Se por um lado os povos indígenas têm
o direito de gerir e usar suas terras de acordo
com seus próprios valores e prioridades,
por outro há cada vez mais necessidade de
oferta de serviços públicos, para
os crescentes problemas de transporte e saneamento,
por exemplo, que possam ser resolvidos. Por isso,
um dos pilares para a elaboração dos
"mini-planos" é a ampla participação
das comunidades, pois eles devem refletir a realidade
e as prioridades apontadas pelos povos indígenas.
Assembléias Regionais
O espaço para elaboração
e aprovação desses Planos Diretores
Regionais são as chamadas Assembléias
Regionais de Política Territorial, instância
maiior de tomada de decisões nas regiões
administrativas. As assembléias são
compostas pelas comunidades indígenas de
cada região, representadas por seus delegados
com o poder de votar nas decisões. Outro
papel importante das assembléias é
eleição dos membros do Conselho Regional
de Política Territorial, que são os
representantes e articuladores da gestão
territorial das regiões administrativas com
base nos seus planos diretores regionais. Sendo
assim, a assembléia possui a obrigação
de avaliar a implementação do Plano
Diretor, emitindo orientações à
Prefeitura e ao Conselho Regional de Política
Territorial.
Os membros desse conselho são
formados com mínimo de quatro e máximo
de 12 integrantes.. Entre eles, são eleitos
dois representantes (um titular e um suplente),
que farão parte Conselho Municipal de Desenvolvimento
Territorial, o "Conselhão", cujo
papel principal é monitorar, fiscalizar e
avaliar a implementação da Lei maior
do Plano Diretor Municipal, analisando e deliberando
sobre questões relativas à sua aplicação.
O "Conselhão" é formado
por representantes de governos, órgãos
públicos e diversos segmentos da sociedade
civil que pertençam ou atuem no município.
Com exceção da Região
Administrativa Táwa, as outras regiões
promoveram as suas assembléias regionais
de abril a agosto. Elas tiveram como objetivo: promover
as leituras comunitárias, formar os conselhos
regionais e estabelecer agenda para a conclusão
da elaboração dos PDRs até
o final do ano. O planejamento para realização
das assembléias aconteceu no início
do ano, com a convocação do "Conselhão"
e das coordenadorias da Foirn. Em conjunto, todos
definiram datas para suas assembléias de
acordo com a programação de eventos
nas comunidades. Uma equipe foi formada para acompanhar
a execução das assembléias
e era composta pelo coordenador do Plano Diretor
e Secretário de Fazenda Municipal, Salomão
de Aquino, representante da diretoria e das coordenadorias
da Foirn e Instituto Socioambiental, parceiros desde
o início da elaboração do Plano
Diretor em 2005.
As assembléias foram conduzidas
pelas organizações indígenas
locais, que por meio das coordenadorias da Foirn,
mobilizaram todas as comunidades das cinco regiões
administrativas. Mapas-base do Rio Negro, produzidos
pelo ISA, foram utilizados no momento das leituras
comunitárias, que facilitaram enxergar a
região administrativa como um todo. O calendário
de realizações das assembléias
ficou da seguinte maneira:
:: Região Administrativa
Hiniali, 26 a 30 de abril de 2008, em Tunuí
Cachoeira;
:: Região Administrativa Médio e Alto
Uaupés e Papuri: 27 a 30 de maio de 2008,
em Iauaretê;
:: Região Administrativa Baixo Uaupés
e Tiquié: 9 a 13 de junho de 2008, em Pari
Cachoeira;
:: Região Administrativa Marié Cauburis:
7 a 10 de julho de 2008, em Tapereira;
:: Região Administrativa Alto Rio e Xié:
26 a 29 de agosto de 2008, em Cué Cué.
Todas tiveram praticamente o mesmo
formato, a ampla participação popular
era o pilar principal que norteava os debates. Elas
se iniciavam com a fala do coordenador do Plano
Diretor, Salomão de Aquino, relatando todos
os passos que seguidos desde o início até
chegar às assembléias regionais. A
participação de um membro da diretoria
da Foirn ou da coordenadoria da região era
de primordial importância, pois eles faziam
a tradução para a língua indígena
local, sobretudo para as lideranças mais
velhas que às vezes mal falam o português.
Os participantes se dividiram
em grupos separados por base territorial. De acordo
com as temáticas, os grupos se reuniam para
expor em cartazes os resultados das discussões,
inclusive desenhando mapas que registraram desde
lugares sagrados, tipos de paisagens, hidrografia
e lugares de interesses histórico-social.
Logo após, todos os grupos apresentavam seus
resultados em plenária, onde surgiam perguntas
que provocavam debates, demonstrando maturidade
e capacidade de discussão da grande maioria
das comunidades indígenas do Rio Negro.
Após o fim das leituras
comunitárias era a vez de se instituir a
Assembléia Regional de Política Territorial,
onde seus os delegados são atores essenciais
para a votação das propostas dos participantes.
Em seguida se criava o Conselho de Política
Territorial, juntamente com a eleição
dos seus membros e a escolha dos dois representantes
que vão para o "Conselhão".
Finalizadas todas as etapas chegava a hora de firmar
uma agenda de trabalho entre os membros do conselho
e a coordenação da elaboração
dos PDRs.
Temas em comum
Os resultados das assembléias
somam um extenso material que contém a radiografia
de todas as regiões do município,
indicando diversos problemas em comum, desafios
e perspectivas para o futuro.
No tema relações
fronteiriças, as regiões Hiniáli,
Médio e Alto Uaupés e Papuri, Baixo
Uaupés e Tiquié e Alto Rio Negro–Xié,
apontaram uma realidade que ocorre há séculos
- o relacionamento com parentes que estão
do outro lado da fronteira, seja na Colômbia
ou na Venezuela. Essa relação se dá
por diversos motivos, entre elas a necessidade de
vender ou trocar produtos como farinha, frutas,
artesanatos e outros, para assim adquirirem utensílios
domésticos, roupas, combustível etc.
Às vezes, essa troca também acontece
quando necessitam de serviços de atenção
a saúde, tanto comunidades colombianas como
brasileiras procuram postos de saúde do lado
brasileiro e colombiano a fim de fazerem consultas
médicas e tratamento dentário.
"Os nossos parentes que estão
do outro lado tem a mesma origem que nós
temos, as nossas relações são
históricas, por isso, precisamos de uma política
diferenciada que reconheça essas relações
sem impor barreiras e burocracias", disse Laureano
Coripaco, liderança da região Hiniáli,
do Alto Rio Içana.
Os movimentos migratórios
que às vezes ultrapassam as barreiras nacionais,
também acontecem entre regiões. Por
exemplo, na região Marié-Cauburi existem
famílias que saíram há muitos
anos do Rio Uaupés (afluente do rio Negro)
para o Baixo Rio Negro em busca de melhores terras
para plantar as roças, de caça e peixe,
visto que nas cabeceiras dos rios, esses recursos
estão cada vez mais escassos. As migrações
também ocorrem por conta da educação.
Famílias inteiras se mudam para cidade ou
para os chamados “ núcleos urbanos” que são
povoados que possuem características de uma
pequena cidade e onde geralmente há Ensino
Médio. "Acreditamos que com a difusão
da educação escolar indígena
diferenciada as nossas comunidades parem de migrar
para outros lugares por causa dos estudos. Mas isso
depende da ampliação dessa política
pública para todas regiões",
informou o professor João Bosco Tuyuka, durante
a assembléia do Baixo Uaupés e Tiquié.
Meio-ambiente, transporte e energia
As assembléias também
demonstraram preocupação com o manejo
ambiental. A causa da escassez de recursos naturais
deve-se ao crescimento da população
e à utilização desenfreada
de algumas comunidades, sem se preocupar com o uso
sustentável. "Sabemos que estamos com
grande desequilíbrio em nossos recursos naturais.
Agora precisamos pensar como vamos incluir essa
preocupação no nosso plano diretor
regional, principalmente para nossas comunidades
se conscientizarem de que tudo isso pode acabar",
informou Silvo Teixeira, da comunidade de Jutica,
alto Uaupés, durante a Assembléia
do Médio, Alto Uaupés e Papuri . No
caso de regiões como Marié-Cauburis,
existem muitos conflitos, um dos mais acirrados
é por conta da pesca predatória. "Aqui
temos muito peixe, só que sofremos com a
invasão de pessoas de outros municípios
ou da cidade que entram na nossa área para
pescar sem nenhum controle e levam o peixe para
vender na cidade. Isso acontece também em
período de piracema. Eles entram também
para pegar peixes ornamentais", afirmou o professor
Juvelino de Lima, durante a Assembléia do
Marié-Cauburis.
Apresentação de
mapa da hidrografia da região durante Assembléia
Marié-Cauburis
Meio de transporte foi um tema
amplamente debatido nas assembléias. Por
se tratar de uma região extensa e com barreiras
naturais como cachoeiras, a dificuldade de deslocamento
é muito grande. O preço da gasolina
é um dos mais caros do Brasil. Os rios são
as estradas naturais, para se deslocar neles é
necessário ter um pequeno barco e um motor,
bens que nem todas as famílias da região
possuem. "Não adianta falarmos de melhorias
na saúde, na educação, no abastecimento,
nas alternativas econômicas, se não
temos um sistema de transporte adequado para as
nossas comunidades, tudo depende disso. Se uma família
do alto Içana precisa tirar documentos na
cidade, vai enfrentar 10 dias só pra chegar
e às vezes elas não tem o combustível
da volta", informou Franklin Baniwa, na Assembléia
Hiniáli. Em algumas comunidades maiores,
como Iauaretê, existe um pequeno comércio
feito pela população local. Por conta
da dificuldade de transporte, a mercadoria chega
com um preço muito alto. "As dificuldades
são enormes, o quilo do frango aqui em Iauaretê
chega a custar R$ 10,00, nem todas as famílias
tem condições de comprar. Precisa
haver um sistema de transporte adequado para nossa
região, isso vai beneficiar a todos",
disse o professor Adão Oliveira, durante
assembléia do Médio, Alto Uaupés
e Papuri.
A geração e distribuição
de energia elétrica também provocou
muitos debates nas assembléias. Muitas comunidades
do Rio Negro não dispõem de sistema
de geração de energia, principalmente
onde há escolas e postos de saúde
indígena, conhecidos como "pólos-base".
A placa solar foi citada como alternativa viável,
sobretudo em comunidades pequenas. Em alguns povoados
onde há pelotão do exército,
existem as Pequenas Centrais Hidrelétricas-PCHs,
que foram construídas há cerca de
10 anos com recursos do Calha Norte. A idéia
inicial das PCHs era levar energia não só
para os pelotões, mas também para
as comunidades que ficam no entorno. Mas isso nunca
aconteceu e durante as assembléias o assunto
veio à tona. "Essas PCHs precisam ser
melhoradas, nós também queremos a
energia que é gerada nela, eles usaram os
nossos igarapés e a nossa mão-obra,
na promessa de que as nossas comunidades também
seriam beneficiadas. Por isso, precisamos estar
atentos para que a lei que estamos construíndo
possa nos defender em casos como esses", informou
Afonso Machado, liderança indígena
de Pari Cachoeira, durante assembléia do
Baixo Uaupés e Tiquié. A busca por
alternativas de geração de energia
limpa, que não agridam o meio ambiente, também
foi uma preocupação comum.
Outros temas tratados foram saúde,
cultura, aparelhos comunitários, saneamento
básico etc. O relatório geral das
assembléias servirá para dar os próximos
passos na elaboração dos planos diretores
regionais que serão a pactuação
dos temas prioritários e elaboração
do projeto de lei e votação na Câmara
Municipal. De acordo com Salomão de Aquino,
na Assembléia do Hiniáli, "a
preocupação maior da prefeitura é
concluir essa ultima etapa dos PDRs ainda em 2008,
para que a próxima gestão municipal
já comece a implementá-los em 2009".
O que é o Plano Diretor
Municipal
É uma obrigação
constitucional e do Estatuto da Cidade (Lei Federal
n. 102757/01), que municípios acima de 20
habitantes tem por dever elaborar o seu plano diretor
até 2006. Trata-se de um instrumento básico
que permite a participação permanente
da população do município,
por meio das suas diversas formas de organização,
na definição e no controle das prioridades
de investimentos públicos. O plano diretor
também prevê a elaboração
de regras para uso e ocupação adequada
do espaço urbano e orienta o seu crescimento.
ISA, Andreza Andrade.