13/11/2008
- Foi às margens do Lago Mamirauá,
na Reserva de Desenvolvimento Sustentável
Mamirauá (AM), no último dia 31 de
outubro. Leia o relato do biólogo Emiliano
Esterci Ramalho, 29, pesquisador-colaborador do
Instituto Mamirauá, que coordena o Projeto
Iauaretê, especial para o ISA.
No dia 31 de outubro de 2008 de manhã capturei
a primeira onça do meu projeto de pesquisa,
na Reserva de Desenvolvimento Sustentável
Mamirauá (RDSM), no Amazonas. A onça
foi capturada depois de 11 noites de armadilhagem
nas margens do Lago Mamirauá, no coração
da Reserva. Local de alta diversidade e abundância
de vida, presas e onças.
O dia havia começado como
todos os outros 10 anteriores. Saímos pela
manhã em duplas para verificar as armadilhas.
A noite anterior havia sido chuvosa, o que não
favorecia a captura porque a chuva lava a camuflagem
e expõe a armadilha. O ânimo e esperança
da equipe já tinham começado a esvair
porque, devido ao limite de tempo e de recursos,
só tínhamos mais 3 dias para fazer
a captura. Chequei as armadilhas pelas quais tinha
ficado responsável e comecei a voltar para
a base quando escutei alguém chamar. Eu não
podia discernir as palavras, mas a freqüência
dos chamados indicava que era alguma coisa urgente.
Só podia ser uma onça. A pessoa que
estava comigo disse: - É uma onça.
Capturamos uma onça. Mas eu não queria
acreditar porque ia ficar muito frustrado se não
fosse. Tentei não pensar nisso até
chegarmos perto. De qualquer maneira aceleramos
o passo. Alguns minutos depois encontramos dois
membros da equipe que confirmaram a notícia.
Havíamos capturado uma onça-pintada.
Corri o mais rápido que
pude para o barco, adrenalina lá em cima,
nem cansei com o quilômetro corrido. Estava
ansioso para ver a onça. Pegamos o barco
e fomos em direção a armadilha. Na
entrada da trilha onde estava a onça nos
esperavam os outros membros da equipe. Preparei
o dardo com tranqüilizante na entrada da trilha.
Juntamos todo o material e entramos na mata. Até
chegar na onça levamos longos 10 minutos.
Nunca vi 10 minutos demorarem tanto a passar. Mas
finalmente chegamos.
E lá estava ela. Cansada
de lutar contra a armadilha que a prendia pela pata
dianteira direita desde a noite anterior e que não
a soltava por nada. Assustada de ver pessoas olhando
direto pra ela sem ela poder se misturar com a vegetação
e se tornar invisível. Talvez a combinação
desses dois sentimentos a tenha deixado com o semblante
calmo e pacífico de quando a encontramos.
Ela não reagiu quando nos aproximamos. O
dardo tranqüilizante foi rápido e preciso.
Saímos de perto dela para que não
lutasse mais contra a armadilha.
Voltamos dez minutos depois. Ela
estava completamente adormecida. Demos início
ao procedimento de instalação do colar
para monitoramento, medições e pesagem,
avaliação física e coleta de
material biológico (sangue e pêlos).
Apesar da euforia de todos, e também de ser
a primeira captura da maior parte da equipe, o procedimento
correu com perfeição. A onça
colaborou. Ela dormiu durante todo o procedimento,
seu estado de saúde era excelente e seus
sinais vitais ficaram praticamente constantes durante
todo o procedimento.
A onça era linda. Fêmea
adulta, jovem (aproximadamente 3 anos), bem alimentada,
saudável e ótima condição
física. Quase 50 quilos e 1,8 metros de comprimento.
Não estava grávida e também
não estava lactante, o que significa que
não tinha filhotes. Dentição
perfeita. Acreditamos que esse ano ela irá
reproduzir pela primeira vez e dar sua contribuição
para a perpetuação da sua espécie.
Se tudo correr bem nós estaremos acompanhando
passo a passo sua experiência como mãe
durante esse ano.
Equipe do Projeto Iauaretê:
em pé, da esquerda para a direita: Joana
Macedo, Sr. Wanderlei, Paulo Faiad, Juliane Cabral.
Agachados, da esquerda para a direita: Dalvino,
Anselmo, Emiliano Esterci Ramalho.
Felicidade, emoção,
excitação, preocupação,
medo, tranqüilidade, orgulho, satisfação,
sensação de dever cumprido. São
todos sentimentos que vem a minha cabeça
quando eu penso na captura de uma onça-pintada.
Eu nunca perguntei isso para os amigos onceiros
mais experientes, que são referência
no estudo da onça-pintada no Brasil – Peter
Crawshaw, Sandra Cavalcanti, Laury Cullen Jr., Ronaldo
Morato, Dennis de Sana, Leandro Silveira, Fernando
Azevedo, Tadeu Oliveira, Renata Leite – mas arrisco
dizer que a lista de sentimentos seria bem parecida.
Obstáculos naturais
Estudar a onça-pintada
(Panthera onca) não é uma tarefa fácil.
Estudá-la na Floresta Amazônica menos
ainda. Reflexo disso é a falta de conhecimento
científico sobre a espécie na região.
Apesar de ser a área mais importante para
a conservação da onça-pintada,
a Amazônia é também o bioma
onde menos se conhece sobre o status, ecologia e
comportamento desta espécie. As principais
causas dessa falta de informação são
as características de predador de grande
porte da onça-pintada – hábitos noturnos
e elusivos, baixa densidade populacional e conflitos
com o homem – e as dificuldades logísticas
de trabalhar na Amazônia – falta de infra-estrutura
no campo, dificuldade de acesso, alto custo no transporte
de pessoal e equipamentos.
Ficou decidido que eu ia estudar
a onça-pintada
A minha vontade de estudar a onça-pintada
surgiu em 2000 durante um estágio na Reserva
de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá
(RDSM), quando eu ainda estava cursando a graduação
em ciências biológicas na Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Mas a vontade estava
muito longe da minha realidade. Trabalhar com onça-pintada
parecia um sonho distante. Eu morava no Rio de Janeiro
e estudava em uma universidade que, apesar de ser
a maior do Brasil, não tinha nenhum pesquisador
estudando o maior predador da América do
Sul, a onça-pintada.
No entanto, em 2001 os ventos
começaram a mudar de direção.
Após um estágio bem sucedido na Reserva
Mamirauá chegou ao conhecimento do Dr. Marcio
Ayres (idealizador e diretor geral da Reserva na
época) o meu interesse em estudar a onça-pintada.
O Márcio, então, me chamou pra conversar
em seu apartamento no Rio de Janeiro. Conversamos
por quase duas horas. Metade do tempo sobre onça,
a outra metade sobre temas variados, incluindo outra
paixão minha e do Márcio, o futebol.
Ficou decidido então que eu iria terminar
minha graduação e estudar a onça-pintada
na Reserva Mamirauá. Na verdade não
sei se essa afirmativa é verdadeira, mas
sai de lá tão focado e entusiasmado
com essa possibilidade que tudo que eu fiz na minha
vida acadêmica e profissional a partir daí
foi como se ela fosse.
Adquirindo experiência
Como eu não tinha como
aprender sobre a onça-pintada no Rio de Janeiro
o jeito foi partir para outras regiões onde
já existiam pesquisas em andamento. O meu
primeiro estágio com onça-pintada
foi em 2002, na Bolívia, no Parque Nacional
Madidi. No Parque, uma equipe de pesquisa da ONG
Wildlife Conservation Society (WCS), coordenada
pelo Dr. Rob Wallace, realizava uma das primeiras
tentativas de estimar o tamanho de uma população
de onças-pintadas por meio de armadilhas
fotográficas. Fiquei em Madidi por cerca
de um mês. O suficiente para aprender os fundamentos
básicos sobre o ofício com as câmeras.
O segundo estágio com onça-pintada,
em 2003, foi em uma fazenda de gado no Pantanal
de Miranda, estado do Mato Grosso do Sul. Lá
trabalhei com a pesquisadora Sandra Cavalcanti,
que na época realizava seu estudo de doutorado
sobre a depredação de gados por onça-pintada.
A Sandra usava outros métodos para estudar
a onça, além das armadilhas fotográficas.
Ela capturava e monitorava as onças. Tudo
que eu queria fazer, um dia, no meu próprio
projeto.
Os estágios foram seguidos
pelo mestrado e início da minha própria
pesquisa sobre a onça-pintada, já
na Reserva Mamirauá, em 2004. No começo,
as questões abordadas eram sobre aspectos
ecológicos básicos da espécie,
como dieta e uso do habitat, e teste de métodos
de amostragem. Depois passei para questões
populacionais, utilizando armadilhas fotográficas
que permitem a identificação de indivíduos
e com isso a estimativa do tamanho da população.
Hoje busco responder questões mais complexas
sobre o movimento, uso do habitat e reprodução
por meio do uso de coleiras de rastreamento GPS/VHF.
As coleiras, depois de instaladas no pescoço
de uma onça-pintada armazenam a posição
do animal a cada duas horas por um período
de um ano. Com isso é possível saber
praticamente tudo que o animal fez durante aquele
período.
Emiliano Esterci Ramalho