20 de
Fevereiro de 2009 - Amanda Mota - Repórter
da Agência Brasil - Manaus - Na opinião
do antropólogo, professor da Universidade
Federal do Amazonas (Ufam) e especialista em assuntos
indígenas, Lino João de Oliveira Neves,
a morte de Océlio Alves Carvalho, no início
deste mês em Envira (AM), pode representar
apenas a ponta de um grande problema na região:
o alcoolismo entre indígenas.
Apesar das suspeitas da polícia
local de que indíos da etnia Kulina teriam
praticado homicídio e depois ingerido partes
do corpo da vítima, Neves considera improvável
a prática de canibalismo entre esse povo.
"Acho improvável que
tenha ocorrido canibalismo. O que tudo indica foi
um homicídio seguido de consumo de carne
humana. Diante disso, o que mais me preocupa entre
os indígenas é o uso do álcool,
que é causa de desequilíbrio social.
Historicamente, o álcool tem sido usado na
Amazônia como elemento de aliciamento e para
causar dependência dos povos indígenas
em relação à sociedade nacional.
Como droga, o álcool traz inúmeros
prejuízos sociais entre os brancos e mais
ainda entre os índios", avaliou o professor
universitário.
Neves estuda os povos indígenas
da região do Juruá-Purus, onde vivem
os Kulina, desde a década de 80. Com base
nos estudos antropológicos, ele reafirmou
a posição da Coordenação
das Organizações Indígenas
da Amazônia Brasileira (Coiab) quanto ao assunto,
ao ressaltar que não há nenhum registro
histórico que trate da prática de
canibalismo naquela área, nem por índios
nem por não-índios.
Em entrevista à Agência
Brasil, Neves explicou que, em termos técnicos,
o canibalismo significa uma prática realizada
de forma ritual e cultural. No caso do assassinato
do jovem Océlio Alves Carvalho, Neves considera
que o ocorrido tenha sido uma fatalidade isolada
e não uma seqüência de prática
periódica. Por isso, avalia que o caso precisa
ser melhor investigado pois o emprego do termo canibalismo
coloca os indígenas numa posição
de bárbaros e não civilizados.
"Infelizmente vemos no país
uma série de investidas antiindígenas
e contra os interesses indígenas, que tem
uma prática histórica de afirmar os
índios como não civilizados, primitivos
etc. O canibalismo nos remete diretamente à
lembrança de povos bárbaros e não
civilizados. Além disso, é uma prática
específica, realizada periodicamente e repassada
culturalmente. Isso é diferente de um crime
localizado onde possa ter havido consumo de carne
humana.", explicou.
A opinião de Neves é
compartilhada pelo coordenador do núcleo
de Pesquisas em Ciências Humanas e Sociais
do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia
(Inpa), Victor Py-Daniel. De acordo com Daniel,
o consumo exagerado de bebida alcoólica pelos
indígenas pode contribuir diretamente para
o aumento da criminalidade entre esses povos.
"No geral, os povos indígenas
da Amazônia precisam de maior assistência
e de programas para melhorar a qualidade de vida.
A disponibilidade de álcool não se
isola em Envira, mas ocorre em várias outras
terras indígenas do Amazonas. A conscientização
quanto ao consumo do álcool e o que ele pode
causar, é que deve ser trabalhada entre os
indígenas. O álcool tira qualquer
pessoa do sério, não precisa ser indígena",
lembrou.
Em nota, a Funai, declarou que
a administração executiva regional
do órgão federal em Manaus segue acompanhando
o caso do assassinato em Envira para que os fatos
sejam devidamente esclarecidos. Segundo o documento
da Funai, a vítima tinha convívio
social com os indígenas e consumia bebidas
alcoólicas dentro da aldeia.
+ Mais
PF vai investigar denúncias
sobre venda de bebida alcoólica a indígenas
de Envira
20 de Fevereiro de 2009 - Amanda
Mota - Repórter da Agência Brasil -
Manaus - Nos próximos dias, a Polícia
Federal (PF) no Amazonas vai instaurar inquérito
para investigar as denúncias apresentadas
pela Fundação Nacional do Índio
(Funai) a respeito da venda indiscriminada de bebida
alcoólica a centenas de indígenas
que vivem no município de Envira. A cidade
está localizada a cerca de a 1.200 quilômetros
de Manaus, na divisa entre o Amazonas e o Acre.
Segundo a assessoria de comunicação
da PF, a investigação atenderá
a um pedido feito pela Funai, depois que um jovem,
não-índio, de 21 anos, foi brutalmente
assassinado dentro da aldeia indígena Cacau,
em Envira.
De acordo com um dos responsáveis
pelo acompanhamento do caso na cidade, o sargento
da Polícia Militar Osmildo Ferreira, o crime
teria ocorrido entre os dias 1º e 2 deste mês.
Em entrevista à Agência Brasil, Ferreira
disse que Océlio Alves Carvalho foi esfaqueado
e depois esquartejado. Parte dos órgãos
do rapaz, como coração, fígado
e cérebro não foram encontrados no
corpo da vítima. Segundo o sargento, a polícia
local trabalha com a hipótese de os criminosos
terem praticado canibalismo, já que um dos
suspeitos teria confessado que o grupo comeu parte
do corpo da vítima, depois de matá-lo.
"O que compete à PM
está sendo investigado aqui. Recebemos uma
denúncia direta que nos levou ao corpo da
vítima e aos suspeitos. Coletamos alguns
depoimentos e um dos suspeitos, que é o Antônio
Valdecir, nos declarou que os índios comeram
as vísceras do Océlio. A vítima
tinha problemas mentais, mas não apresentava
nenhum potencial ofensivo contra ninguém",
relatou o sargento.
Quatro homens e uma mulher – todos
indígenas da etnia Kulina - são suspeitos
de praticar o crime. No local do assassinato, às
margens de um igarapé localizado dentro da
aldeia Cacau, também foram encontradas garrafas
de aguardente que indicam o consumo de bebida alcoólica
antes do crime.
O coordenador da Coordenação
das Organizações Indígenas
da Amazônia Brasileira (Coiab), Jecinaldo
Sateré, afirmou que desconhece qualquer registro
que trate da prática de canibalismo entre
o povo Kulina. Para a organização,
a divulgação equivocada desse tipo
de ato pode ser mais uma tentativa de denegrir a
imagem dos indígenas no país.
"O caso vai ser investigado.
Entretanto, de imediato, o que também está
nos deixando mais preocupados é o consumo
de bebida alcoólica na região",
afirmou Sateré.
Para a direção da
Coiab, as acusações contra os Kulina
fortalecem o preconceito e a discriminação
racial. A organização indígena
informou que também enviará à
direção da Funai pedido para formação
de uma equipe de antropólogo e assistente
social para fazer um laudo técnico sobre
o episódio. O objetivo, segundo a direção
da entidade, é garantir segurança
e proteção do povo Kulina. Em Envira,
segundo a Coiab, vivem aproximadamente 800 indígenas
da etnia.
Em entrevista à Agência
Brasil, a presidente da Comissão Organizadora
do Movimento Indígena Regional (que reúne
índios do Acre, do sul do Amazonas e noroeste
de Rondônia), Letícia Yawanawa, ressaltou
que o fato de o assunto ter tomado repercussão
nacional causou aos outros indígenas uma
situação de desconforto. Segundo a
líder indígena, que atualmente vive
em Rio Branco (AC), o assunto chegou às escolas
e provocou novas situações de preconceito
entre as crianças. Ela criticou a abordagem
dos veículos de comunicação
sobre a questão.
"Estou chocada com as matérias
veiculadas sobre o assunto. Hoje meus filhos foram
à escola e voltaram chorando e entristecidos
porque os colegas disseram a eles que não
poderiam se aproximar porque eles [meus filhos]
comiam ser humano", lamentou.