Elmano
Augusto - Brasília (09/04/2009) – Vida de
chefe de unidade de conservação (UC)
em área urbana não é nada fácil.
Principalmente se a UC for de uso sustentável.
Que o diga a analista ambiental Glauce Brasil, gestora
da Reserva Extrativista (Resex) Marinha de Pirajubaé,
próxima ao centro de Florianópolis
(SC). Em função das muitas pressões
sobre a unidade – pesca predatória, invasões,
poluição –, Glauce e sua equipe têm
uma rotina muito pesada.
Além de gerenciar os programas
de gestão e participar das operações
de fiscalização em Pirajubaé,
ela despacha quase que diariamente com órgãos
ambientais locais, faz interlocução
com o Ministério Público e atende
demandas dos moradores tradicionais, entre outras
atividades. Tudo para manter bem conservada a primeira
reserva extrativista marinha do Brasil, criada em
1992, com uma área de 1.444 hectares – metade
no mar, metade em terra coberta por manguezal –,
repleta de recursos naturais e de terrenos de alto
valor imobiliário, cobiçados por muita
gente.
A reportagem da Assessoria de
Comunicação (Ascom), do Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
(ICMBio), esteve em Florianópolis para acompanhar
de perto um pouco dessa rotina de trabalho. E encontrou
Glauce na sexta-feira (3) envolvida com um tema
mais ameno porém não menos preocupante:
a realização do show de 50 anos de
carreira do Rei Roberto Carlos na cidade, previsto
para o dia 16 de maio.
LIBERAÇÃO – O show,
gratuito, será realizado em palco montado
em área livre ao lado da Resex. São
esperadas mais de 200 mil pessoas. Um evento desse
porte pode causar impacto sobre a reserva. Por isso,
a produção do show solicitou autorização
à direção da unidade. A liberação
foi dada. Mas somente depois que os organizadores
se comprometerem a cumprir uma série de condicionantes
para evitar ou minimizar o impacto.
“Não bastasse os nossos
problemas do dia a dia, surge mais esse”, diz Glauce,
bem-humorada, ao deixar a sede da Superintendência
do Ibama, na Rua Mauro Ramos, no centro, onde ocorreu
a reunião, para seguir até a Resex,
que fica a pouco mais de cinco quilômetros,
à margem da rodovia de pistas largas que
leva ao aeroporto, a Via Expressa Sul.
A construção da
rodovia, em 2004, ainda é motivo de discórdia
entre a comunidade local e os órgãos
ambientais. Na época, a obra foi liberada
com várias condicionantes e compensação
ambiental, que teriam a função de
viabilizar ações de estruturação
da Resex, como a elaboração plano
de manejo, construção da sede e projeto
de economia solidária. Mas o governo estadual,
responsável pelo empreendimento, não
cumpriu o compromisso, apesar da cobrança
permanente e acompanhamento do Ministério
Público.
A obra, importante para desafogar
o trânsito direcionado à porção
sul da Ilha de Santa Catarina, exigiu um aterro
de grandes proporções e acabou sendo
realizada fora dos padrões previstos no licenciamento,
o que agravou os impactos ao ecossistema da Resex.
Por causa disso, a população local
ainda se ressente da diminuição dos
recursos marinhos que lhes servem à subsistência
e geração de renda.
Por isso, logo ao descer de seu
carro, já no interior da reserva, Glauce
é recebida com um misto de respeito e desconfiança
pelos moradores tradicionais. Ao seu lado, além
do repórter, a analista ambiental Fabiana
Bertoncini, que vai substituí-la nos próximos
dias no comando da administração da
reserva.
DEFESO – Nos barracos de madeira,
erguidos um ao lado do outro, conhecidos como ranchos
de pesca, de frente para a faixa de mar que divide
a Ilha de Santa Catarina do continente, os pescadores
arrumam seus apetrechos. Glauce pede licença
e verifica se as redes, malhas e ganchos (espécies
de caixotes feitos de vigas de ferro usados para
captura de berbigões) estão dentro
das especificações estabelecidas pelo
ICMBio e Ibama.
Atualmente, a atividade extrativista
no local concentra-se na coleta do berbigão,
um pequenino molusco envolto em concha que faz a
festa da culinária na região. Há
ainda pesca de peixes e camarão, embora em
quantidade menor. “Os bichos estão sumindo”,
diz Mauri Cardoso, um dos antigos moradores da região.
Mauri é um velho conhecido
da Glauce. Estiveram juntos em vários movimentos
em defesa da Resex. Embora reconheça que
as coisas não andam tão bem, ele admite
que o trabalho da equipe gestora da reserva é
importante para a preservação dos
recursos naturais que garantem o sustento da comunidade.
Um exemplo disso é modelo
de defeso adotado na Resex, que visa exatamente
a evitar o que Mauri tanto teme, o sumiço
dos recursos pesqueiros que garantem a sobrevivência
da comunidade. Em vez de proibir a coleta do berbigão
em toda a extensão da reserva durante um
determinado período do ano, a administração
dividiu a área marinha em dois bancos, A
e B.
Numa metade do ano, a extração
do berbigão é liberada no banco A
e proibida no banco B. Na outra metade do ano, ocorre
o inverso. Assim, os moradores podem exercer o extrativismo
o ano todo, sem afetar o ciclo reprodutivo da fauna
marinha. “O problema é que muita gente não
respeita as regras, principalmente pescadores que
vêm de fora”, volta a reclamar Mauri.
Glauce admite que os conflitos
entre pescadores de áreas próximas
à reserva ou mesmo de outras regiões
mais afastadas, principalmente do município
de Palhoça, que fica no continente, e a comunidade
da Costeira do Pirajubaé, como é conhecida
a região da Resex, tem lhe dado muita dor
de cabeça.
RECADASTRAMENTO – Para contornar
o problema, a chefia fez o recadastramento dos moradores
tradicionais. O objetivo é permitir que somente
eles possam explorar de forma sustentável
os recursos da reserva. No momento, há pouco
mais de 90 famílias que se declaram beneficiárias,
mas boa parte delas não se caracteriza como
tradicional. “Com a sistematização
dessas informações, vamos conversar
com os moradores, tendo como base as normais legais
e a realidade da Resex”, anuncia Glauce.
Além do recadastramento
dos moradores tradicionais, a direção
da Resex realizou o levantamento das invasões
mais recentes e autuação dos responsáveis
pela infração, outro drama sério
na unidade. Para dar uma idéia do problema,
Glauce nos convida a entrar no carro para uma rápida
inspeção na área de terra em
torno da unidade. Durante o percurso, o que se vê
são casas e mais casas rentes ao limite da
reserva. A região é muito habitada.
“É só darmos uma cochilada e as pessoas
invadem. Aí a gente tem que agir rápido”,
diz Glauce.
Segundo ela, já foram identificadas
16 casas e duas lojas comerciais construídas
em área que estaria dentro dos limites da
reserva, constituindo ocupação mais
recente. “Há até uma madeireira, que
já multamos mais de uma vez”, diz a chefe.
Apesar das dificuldades, a gestora
vislumbra dias melhores. No momento, junto com Fabiana,
a futura chefe, Glauce está envolvida no
processo de seleção dos consultores
que serão contratados para elaborar a primeira
etapa do plano de manejo da unidade. “Nossa preocupação
é criar um processo participativo na elaboração
do plano de manejo.Essa ação, junto
com a consolidação de uma estrutura
local e a recente ampliação da nossa
equipe, possibilitará um avanço significativo
em direção ao fortalecimento da Resex”,
afirma.
PLANO DE MANEJO - Nessa primeira
etapa do plano, será feito o levantamento
das informações existentes sobre a
Resex, sua sistematização e identificação
de lacunas que mereçam estudos específicos.
Será iniciada ainda a formação
do conselho deliberativo da unidade, o que dará
mais fôlego à administração.
“O funcionamento do conselho fortalece o nosso trabalho.
Os conselheiros serão como parceiros nossos
na administração da reserva”, diz
a chefe, ao explicar que o órgão terá
a participação de representantes da
comunidade, do Instituto Chico Mendes, do poder
público municipal e estadual e de outras
entidades governamentais e da sociedade civil.
Há ainda, segundo Glauce,
outros projetos importantes, como o de educação
ambiental, que está sendo realizado em parceria
com a Univali, uma importante universidade privada
do Estado, e o de monitoramento da qualidade da
água, também executado pela Univali,
ambos resultantes das exigências para a liberação
da Via Expressa Sul.
A gestora conta ainda com repasses
da compensação ambiental de dois empreendimentos,
que reforçarão a constituição
do conselho gestor e a conclusão do plano
de manejo, e o cumprimento de uma das condicionantes
do licenciamento da Via Expressa Sul, que prevê
a construção da sede da Resex e de
um centro de visitantes.
“Com o aumento de nossa equipe,
planejamos também iniciar um levantamento
das atividades com potencial poluidor , especialmente
em nosso entorno, preparando-nos para ações
de controle. Além disso, vamos nos imbuir
ainda mais da gestão integrada das UCs marinhas,
pois esta abordagem mais sistêmica, potencializa
muito as nossas ações”, relata Glauce.
Ela faz questão de ressaltar
que todos esses projetos passarão, nos próximos
dias, para a responsabilidade direta de Fabiana,
a sua sucessora na chefia da unidade. Mas Glauce
garante que continuará envolvida na gestão
da unidade. “Deixo a chefia, mas não deixo
o meu trabalho aqui na reserva. Continuarei dando
a minha contribuição para melhorar
essa realidade. Apesar das dificuldades, tenho certeza
que vamos avançar ainda mais”, conclui a
analista.