15/05/2009 - Pouco antes do início
da audiência pública e vigília
em defesa da Amazônia, no plenário
do Senado, nessa quarta-feira, 13/5, a Câmara
dos Deputados aprovava a Medida Provisória
nº 458/2009, que regulariza terras públicas,
apesar de todos os riscos nela embutidos. Agora,
a MP vai para o Senado que terá a responsabilidade
de corrigí-la ou de jogar 67 milhões
de hectares de terras públicas no lucrativo
mercado de terras. Relatoria está nas mãos
da senadora Kátia Abreu (DEM-TO), atual presidente
da Confederação Nacional
de Agricultura (CNA), e uma das lideranças
da bancada ruralista, que defende a diminuição
das “restrições ambientais” à
produção agrícola.
Aconteceu o que todos imaginavam.
“Se lixando” para a manifesta contrariedade de organizações
ligadas à agricultura familiar, à
reforma agrária e ao meio ambiente, a Câmara
dos Deputados aprovou, por ampla maioria, a MP nº
458, que permite a alienação de terras
públicas federais, por processos simplificados,
na Amazônia Legal.
Idealizada originalmente pelo
ministro Mangabeira Unger, mas posteriormente adotada
pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário
(MDA), a MP permite que a União doe ou venda,
a preços subsidiados, terras de até
1,5 mil hectares (15 km²) em nove estados (Acre,
Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará,
Rondônia, Roraima e Tocantins e parte do Maranhão).
O MDA argumenta que essa medida visa a regularizar
a posse de milhares de caboclos, ribeirinhos e agricultores
familiares que ocuparam a região, com incentivo
do Estado, ao longo do século XX, mas que
até hoje não conseguiram o título
de propriedade das terras em que vivem e plantam.
O texto aprovado, no entanto,
tem tudo para tornar-se mecanismo de estímulo
à grilagem e à concentração
fundiária, indo no sentido contrário
ao defendido pelo MDA. Ele simplifica excessivamente
os procedimentos de verificação da
legitimidade da posse, pois retira a necessidade
de vistoria prévia para a alienação
de até quatro módulos fiscais (que
pode chegar a 600 hectares em algumas regiões)
e não vincula os trabalhos de regularização
a qualquer plano de ordenamento territorial previamente
discutido e aprovado. Sem vistoria prévia
não há como se assegurar que quem
está reclamando ser ocupante de uma terra
seja o real possuidor. Isso pode facilitar o trabalho
dos grileiros, que historicamente se utilizam de
“laranjas” para conseguir títulos de propriedade
sobre terras públicas, criando na prática
enormes latifúndios e expulsando os verdadeiros
moradores. Saiba mais sobre a MP.
Porém, para muitos deputados,
notadamente os ruralistas, as facilidades existentes
no relatório submetido a votação
não eram suficientes. O DEM, por exemplo,
tentou aprovar destaque que retirava a condição
de que, para alguns casos, o beneficiário
da terra pública não seja proprietário
de outro imóvel, e o PSDB pediu a retirada
do prazo de cinco anos de ocupação
na terra para que o particular possa se beneficiar
da regularização. Ambos os destaques
foram rejeitados, mas isso não representa
nenhuma vitória, pois continuou no texto
a possibilidade de venda de terras para empresas
e para ocupantes indiretos, dentre outros pontos
problemáticos (veja quadro abaixo).
De acordo com Maria José
da Costa, coordenadora nacional do Movimento dos
Pequenos Agricultores, a medida aprovada é
motivo de preocupação: “A pauta de
regularização fundiária é
histórica de todas as organizações
camponesas, indígenas, quilombolas e ribeirinhas,
mas, como foi aprovada, traz questões de
irresponsabilidade política, pois quem vai
pegar carona no benefício são as grandes
extensões de terra, nas mãos de grileiros
e latifundiários, que são os principais
responsáveis pelo trabalho escravo e pela
violência do campo no país”.
Ela conta que a esperança
é reverter algumas questões no Senado,
como o acesso ao beneficio para pessoa jurídica,
o que considera um atentado à própria
reivindicação das populações:
“É inadmissível. Qualquer empresa,
inclusive estrangeira, pode acabar beneficiada”,
diz.
Maria José espera que também
seja discutido no Senado o limite da terra e as
condicionantes ambientais: “É preciso priorizar
quem tem até quatro módulos. E não
existe compromisso de recuperação
do desmatamento feito anteriormente, o que deveria
ser um condicionante para receber o benefício,
já que a questão fundamental dessa
medida deveria ser a função social
da terra”, conclui.
Segundo o coordenador-adjunto
do Programa de Política e Direito Socioambiental
do ISA, Raul do Valle, a medida aprovada é
temerária, tanto do ponto de vista ambiental
quanto, e principalmente, do destino do patrimônio
público: “No país inteiro, os grandes
fazendeiros vêm falando que é um absurdo
terem de cumprir uma regra que existe desde 1934,
que é a de manter a reserva legal. Alegam
que isso deveria ser obrigação do
Estado, e não deles”, explica. “Agora, quando
se trata de privatizar terras na Amazônia,
eles alegam que elas devem ser grandes porque dentro
está incluída a reserva legal, da
qual eles terão que cuidar. Sabemos que elas
não serão respeitadas”, analisa Raul
do Valle. “Por isso é fundamental que, antes
de passar as terras para a frente, seja feito o
ordenamento territorial da região, com a
criação de áreas protegidas
que garantam a biodiversidade e estanquem o desmatamento”.
A senadora Marina Silva denominou
a MP como o “maior programa de regularização
da grilagem” da maneira como foi aprovada pelos
deputados. “São 67 milhões de hectares
de terras públicas saqueadas do povo brasileiro,
que podem ser tituladas por aqueles que fazem grilagem,
que usam laranjas, que usam violência. A Câmara
teve sua oportunidade. O Senado terá sua
oportunidade de fazer o reparo no que foi aprovado.
Ou então caberá ao Presidente Lula
fazer o veto daquilo que não convém
à Amazônia e à sociedade brasileira",
disse a senadora no pronunciamento que fez durante
a Audiência pública e Vigília,
na quarta-feira à noite. (Leia mais sobre
a Vigília no final do texto)
Os problemas da MP nº 458
Pontos polêmicos aprovados
pela Câmara
Benefício a empresas ou
pessoas que não vivam da terra: possibilidade
de alienar terras públicas, de ate 1500 hectares,
a empresas ou pessoas físicas que já
tenham outros imóveis no país e que
não dependam da terra para sobreviver. Estes
participarão de licitação,
mas terão direito de preferência, mesmo
sem haver vistoria prévia para comprovar
posse mansa e pacífica da área reivindicada
com tamanho de até 4 módulos (até
600 hectares em algumas regiões).
Concentração de
terras nas mãos de poucos: não há
nenhuma vedação a que uma mesma pessoa
possa ter diversas empresas e cada uma delas se
beneficiar da regularização de uma
área diferente, ou mesmo que os sócios
de uma empresa consigam uma terra em caráter
pessoal e outra como pessoa jurídica.
Criação de um lucrativo
mercado de terras para empresas ou grandes fazendeiros:
os caboclos e agricultores familiares terão
que cumprir uma série de exigências
e não poderão vender suas terras por
10 anos. Por outro lado, as empresas e ocupantes
indiretos (fazendeiros que não vivem na terra)
poderão vender a terra apenas 3 anos após
sua compra do Poder Público, o que atrairá
muito mais especuladores (interessados em pegar
terras públicas baratas para poder revendê-las
com lucro) do que agricultores.
Doação das terras
sem necessidade de ter a reserva legal já
averbada: na versão original da MP, a área
só seria registrada em nome do particular
se a área de reserva legal fosse identificada
e averbada. Agora há apenas o “compromisso”
do adquirente em averbar, futuramente, a reserva
legal. Enquanto isso não ocorrer, mesmo que
haja desmatamento ilegal, não será
rescindido o título de propriedade (penalidade
prevista na lei para quem descumpre algumas condições),
pois, pela versão aprovada, isso só
ocorrerá quando o desmatamento acontecer
na reserva legal. Além disso, o texto abre
a possibilidade de que o desmatamento ilegal que
venha a justificar a rescisão do título
seja compreendido como “benfeitoria” e justifique
indenização por parte do Estado ao
particular.
Falta de controle no processo
de privatização de terras públicas:
continua sem haver qualquer tipo de garantia de
que o processo de regularização de
posses venha a de fato aprimorar o ordenamento fundiário
de determinada região, e não piorá-lo.
A demanda de que a privatização “expressa”
de terras públicas prevista na lei ocorresse
apenas em locais onde o ordenamento territorial
(criação de unidades de conservação,
demarcação de terras indígenas,
implantação de assentamentos de reforma
agrária, definição da vocação
econômica da área definida pelo zoneamento
ecológico-econômico) já estivesse
resolvido não foi acatada.
A noite dos resistentes
Na noite de 13 de maio de 2009
quase 60 pessoas permaneceram no auditório
do Senado até as 2h30 da manhã acompanhadas
por alguns milhares de outros resistentes em frentes
das suas TVs e computadores. A vigília em
defesa da Amazônia foi chamada pelo Movimento
Amazônia para Sempre para entregar aos legisladores
brasileiros, alguns deles constituintes de 1988,
1,2 milhão de assinaturas em defesa das leis
socioambientais consagradas na Constituição
brasileira.
Durante a audiência pública,
a senadora Marina Silva, valendo-se da definição
da palavra vigília como está nos dicionários,
disse que vigília é o estado em que
a nação brasileira deve ficar constantemente
neste momento de ataque às leis ambientais.
Marina parecia estar antevendo o embate que deverá
ocorrer em breve no Senado quando a MP for à
votação. A relatora, senadora Kátia
Abreu (DEM-TO), tem liderado a mobilização
da bancada ruralista para reduzir o rigor das leis
ambientais argumentando que elas prejudicam a agropecuária
e o desenvolvimento.