26/06/2009 - Apesar da
pressão e das denúncias das organizações
socioambientais, o Presidente veta apenas a transferência
de terras para empresas e pessoas que exploram indiretamente
a área ou que tenham imóvel rural
em outra região do País.
A sociedade bem que tentou: fez
vigília no Senado, enviou carta aberta ao
governo, divulgou nota pública contra o desmonte
da política ambiental, participou de ações
e campanhas de Internet, como as levadas adiante
pelo ISA, enfim, protestou contra a possibilidade
de entregar a Amazônia de mãos beijadas.
Mas, ignorando os alertas das organizações
e manifestações da sociedade civil
sobre os riscos incluídos na proposta, o
Presidente da República sancionou a Medida
Provisória nº 458. Transformada na Lei
nº 11.952, foi publicada no Diário Oficial
da União de hoje, 26/06/2009, sem o artigo
7º da MP, que permitia a regularização
de terras públicas para pessoas jurídicas,
ocupantes indiretos (pessoas que não vivam
da terra) e proprietários de outros imóveis.
Os demais pontos problemáticos permaneceram:
simplifica excessivamente os procedimentos de verificação
da legitimidade da posse, pois retira a necessidade
de vistoria prévia para a alienação
de até quatro módulos fiscais (que
pode chegar a 400 hectares em algumas regiões)
e não vincula os trabalhos de regularização
a qualquer plano de ordenamento territorial previamente
discutido e aprovado.
Com as brechas existentes na lei,
abre a possibilidade para que ocorram desvios, como:
- Concentração de
terras nas mãos de poucos: com a dispensa
de vistoria, embora esteja formalmente proibida
a compra de terra por quem já tem imóveis
e por terceiros, pode vir a ocorrer que a regularização
beneficie a mesma pessoa com áreas diferentes
por meio de "laranjas".
- Criação de um
lucrativo mercado de terras para empresas ou grandes
fazendeiros: os caboclos e agricultores familiares
terão que cumprir uma série de exigências
e não poderão vender suas terras por
10 anos. Por outro lado, as propriedades acima de
400 hectares poderão ser vendidas após
três anos da concessão dos títulos.
- Doação das terras
sem necessidade de ter a reserva legal já
averbada: na versão original da MP, a área
só seria registrada em nome do particular
se a área de reserva legal fosse identificada
e averbada. Agora há apenas o “compromisso”
do adquirente em averbar, futuramente, a reserva
legal. Enquanto isso não ocorrer, mesmo que
haja desmatamento ilegal, não será
rescindido o título de propriedade (penalidade
prevista na lei para quem descumpre algumas condições),
pois, pela versão aprovada, isso só
ocorrerá quando o desmatamento acontecer
na reserva legal. O texto também abre a possibilidade
de que o desmatamento ilegal que venha a justificar
a rescisão do título seja compreendido
como “benfeitoria” e justifique indenização
por parte do Estado ao particular.
- Falta de controle no processo
de privatização de terras públicas:
não há qualquer tipo de garantia de
que o processo de regularização de
posses venha de fato a aprimorar o ordenamento fundiário
de determinada região, e não piorá-lo.
A demanda de que a privatização “expressa”
de terras públicas prevista na lei ocorresse
apenas em locais onde o ordenamento territorial
(criação de unidades de conservação,
demarcação de terras indígenas,
implantação de assentamentos de reforma
agrária, definição da vocação
econômica da área definida pelo Zoneamento
Ecológico Econômico) já estivesse
resolvido não foi acatada.
Em vigor com tantos problemas,
o desafio agora é evitar que a lei efetivamente
beneficie especuladores e grileiros. De acordo com
Raul Telles do Valle, coordenador adjunto do Programa
de Política e Direito Socioambiental do ISA,
um dos problemas principais da lei não é
o que ela diz que pretende fazer, mas a quantidade
de brechas que ela tem para fazer o contrário:
"Dar terras de até 400 hectares apenas
com a declaração do interessado, sem
sequer fazer vistoria, é um dos pontos que
abre o campo para os laranjais dos grileiros. Portanto,
é fundamental, sobretudo nesse começo,
haver total transparência dos dados de forma
a abrir a possibilidade de controle social efetivo
que possa identificar esses casos e punir os envolvidos".
De acordo com a assessoria de
imprensa do ministro do Desenvolvimento Agrário,
Guilherme Cassel, a expectativa do governo é
de que, com a regulamentação das posses,
os órgãos de fiscalização
tenham maior facilidade para identificar e punir
eventuais crimes ambientais na região. Para
Raul do Valle, entretanto, o efeito pode ser o contrário.
“Em primeiro lugar, o índice de responsabilizaçao
hoje é baixíssimo, menos de 1% das
multas são pagas. Em segundo lugar, se a
lei for lida como uma anistia pela ocupação
irregular de terras públicas, o que já
está ocorrendo em alguns lugares, ela incentivará
a continuidade da grilagem sobre terras públicas,
ou seja, apropriação de terras baratas,
que é a base do desmatamento ilegal”.
A lei estabelece a criação
de um comitê fiscalizador, ainda a ser definido.
O veto pode ser derrubado em sessão
plenária do Congresso (Senado e Câmara),
sem data marcada.
Entenda como começou
No ano passado, o ministro-chefe
da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE),
Roberto Mangabeira Unger, anunciou a intenção
de criar uma nova instituição especialmente
para tratar da regularização fundiária
na Amazônia, a qual, com a simplificação
das leis existentes, poderia, em muito menos tempo,
fazer o trabalho realizado pelo Incra. O Ministério
do Desenvolvimento Agrário (MDA), por sua
vez, também apresentou uma proposta de como
acelerar a regularização de terras
públicas na Amazônia, simplificando
procedimentos e diminuindo o tempo e os custos do
processo administrativo.
ONGs marcaram sua posição
diante das tentativas federais de acelerar o processo
por meio da criação de um novo órgão
e da flexibilização das regras. Em
novembro de 2008, nove organizações
da sociedade civil enviaram carta ao governo indicando
prioridades e princípios que devem guiar
o processo administrativo de regularização
fundiária em terras públicas, de forma
a considerar, efetivamente, a função
social da terra. O texto valorizou a necessidade
de regularização fundiária
como uma ferramenta a serviço de uma estratégia
de ordenamento fundiário para a região,
como os Zoneamentos Ecológicos Econômicos
(ZEEs) estaduais, evitando a ocupação
privada de áreas de interesse para conservação
ou outras finalidades públicas.
Dessa polêmica saiu a MP
nº 458, possibilitando à União
a transferência de terras federais de até
1,5 mil hectares (15 km²) em nove estados (Acre,
Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará,
Rondônia, Roraima e Tocantins e parte do Maranhão).
São 67 milhões de hectares (13,4%
da Amazônia Legal) e uma parte significativa
será doada ou vendida a preços simbólicos,
sem necessidade de licitação. Com
processos simplificados, e em alguns casos sem exigência
de vistoria prévia, a nova lei tende a estimular
a grilagem e a concentração fundiária,
com o conseqüente aumento da violência
no campo e do desmatamento, apesar das condicionantes
ambientais, como o compromisso do beneficiado na
recuperação de áreas degradadas.