22 de junho de 2009 - A visita
do Ministro da Justiça Tarso Genro a indígenas
de recente contato foi a primeira de um chefe de
estado em uma área isolada. Situada entre
os rios Cuminapanema, Urucuriana e Erepecurú,
noroeste do Estado do Pará, a Frente de Proteção
Cuminapanema trabalha com 245 indígenas,
divididos em 11 aldeias, habitantes de seu território
de ocupação imemorial.
Tarso Genro qualificou o significado da visita por
considerar a Frente de Proteção um
trabalho exemplar e elogiou a política da
Funai em relação aos povos isolados,
“é uma política absolutamente correta”,
afirmou Genro. Para ele, “é um ponto de organização
do contato do estado brasileiro com a comunidade
indígena isolada, que o estado protege o
território, a cultura e, ao mesmo tempo permite
que os indígenas tenham, não apenas
um processo de aproximação, não
só com o estado, com a sociedade, mas um
controle racional, de respeito à sua cultura,
que não agride a sua identidade” complementou
o ministro. Participaram, também, da comitiva
do ministro, além do presidente da Funai,
Márcio Meira, o Diretor Geral do Departamento
de Polícia Federal, Luiz Fernando Correa
e o Secretário de Direitos Humanos Adjunto,
Rogério Sotilli.
Os Zo’é tornaram-se publicamente
conhecidos no final de 1980 (inicialmente chamados
“Poturús”) como um dos últimos povos
da Amazônia a entrar em “contato efetivo”
com a sociedade ocidental. No início da década
de 1980, missionários da Missão Novas
Tribos (MNTB), dispuseram-se a atraí-los
com fins evangelizadores, a revelia de autorização
do estado. Esta relação proselitista
perdurou por alguns anos e deixou sequelas coletivas,
sobretudo altíssimas taxas de morbi-mortalidade.
Em 1991, a FUNAI retirou legalmente a MNTB do território
Zo’é, assumindo a assistência exclusiva
daquela população. Mesmo sabendo da
existência do povo Zo`é, foi na década
de 90 que a Funai conseguiu a interdição
imediata do território, inicialmente conhecido
como Área Indígena Cuminapanema-Urucuriana
e, posteriormente, demarcado como Terra Indígena
Zo’é, com 668,5 mil hectares. Além
de garantir a demarcação da terra
indígena, a Funai se empenhou em adicionar
legalmente faixas de proteção ambiental
no entorno do território indígena,
implantando o princípio jurídico-ambiental
de “zonas intangíveis” para conservação
e reprodução segura dos espécimes
da flora e fauna e preservação de
recursos hídricos. Presente na visita, a
antropóloga Dra. Dominique Gallois, que tem
um estudo apurado com os Zo`é, reafirmou
a importância da demarcação:
“aqui foram feitos estudos ao longo de muitos anos,
que correspondem exatamente a área que os
Zo`é usam, conhecem e precisam para sua expansão.
E é muito importante que ela seja cercada
por áreas, unidades de conservação,
que tem também uma função de
integração com a terra indígena,
para a proteção da flora e fauna”
explicou Gallois. Para ela, a importância
desse povo para a sociedade ocidental representa
uma alternativa de um grupo, que teve a oportunidade
de um trabalho muito cuidadoso, “comparado a outros
grupos que foram violentamente integrados a nossa
sociedade, sem conseguir que fossem completamente
integrados. Também por que eles mostram um
modo de vida bem adequado à região
da floresta tropical, extremamente equilibrado,
uma qualidade de vida que não se perdeu e
que, em geral, nós ajudamos para que outros
índios perdessem”, conclui.
Atualmente o povo Zo`é
apresenta um índice de mortalidade infantil
zero. A incisiva e contínua ação
e promoção do quadro de saúde
coletiva se dá por meio de investimento em
infraestrutura de atendimento na própria
área, tecnologia em equipamentos (recursos
laboratoriais, cirúrgicos e para atendimento
de emergências vitais), estoque de medicamentos
atualizado, disponibilidade de profissional de saúde
em área, em tempo integral, e estrutura de
telecomunicações em caso de urgência,
com sólida rede de profissionais médicos
colaboradores e instituições relacionadas
para o atendimento emergencial, quando necessário.
O empenho no aprendizado da língua nativa
e busca permanente pela valorização
da estrutura sócio-econômica autônoma
dos Zo’é, permite romper com práticas
de assistencialismo, que promoviam a dependência.
Concomitantemente à autonomia produtiva e
alimentar, o diálogo em sua própria
língua e o profundo respeito às suas
formas sociais promoveram a autoestima cultural
e o reconhecimento coletivo da importância
da perpetuação de sua autonomia produtiva
e práticas milenares, como o cerne de sua
sobrevivência e qualidade de vida, refletindo
positivamente na saúde, nos padrões
de ocupação territorial, na conservação
ambiental e na centralização da forma
de vida Zo’é como a essência de sua
autonomia e direito étnico. O Chefe da Frente
de proteção Cuminapanema, João
Lobato, que trabalha na região há
mais de 10 anos, destaca a importância desse
povo. Para ele, “o Zo`é hoje se constitui
ainda numa possibilidade de entendermos e/ou melhorarmos
a nossa relação com outros povos indígenas,
que ainda virão, enquanto isolados. E também
rever a possibilidade de conhecer melhor outros
povos”.
+ Mais
Estudo contesta criminalização
do infanticídio indígena
25 de junho de 2009 - Quem tem
legitimidade para decidir o que é vida, o
que é ético, o que é humano?
Estas são indagações que Marianna
Holanda faz em sua dissertação de
mestrado, defendida no Departamento de Antropologia
da Universidade de Brasília. No estudo, a
antropóloga avalia o Projeto de Lei 1.057/07,
que trata da criminalização do chamado
infanticídio indígena – prática
de algumas tribos em relação a neonatos
com deficiências que impedem a socialização.
O PL está na pauta da Comissão de
Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos
Deputados desta quarta-feira, 24 de junho.
“Diante do que chamamos juridicamente
de infanticídio, não cabe falar em
infanticídio indígena. O que há
nessas aldeias são estratégias reprodutivas
pensadas em prol da comunidade, e não de
indivíduos isolados. Só um número
muito reduzido de crianças acaba sendo submetido
a elas”, diz Marianna, autora da dissertação
intitulada Quem são os humanos dos direitos?
Sobre a criminalização do infanticídio
indígena. “E são crianças com
problemas que, mais tarde, impossibilitarão
qualquer tipo de interação social”,
completa.
Segundo a antropóloga,
para os índios, sem socialização
a criança jamais atingirá a humanidade
plena. Por isso, ela dedicou uma parte do trabalho
para entender como se constitui a noção
de humanidade entre os indígenas. “Esse é
um dos pontos centrais do estudo: o que nós,
brancos, entendemos como sendo vida e humano é
diferente da percepção dos índios.
Um bebê indígena, quando nasce, não
é considerado uma pessoa – ele vai adquirindo
pessoalidade ao longo da vida e das relações
sociais que estabelece”, explica.
De autoria do deputado Henrique
Afonso (PT-AC), o PL 1.057/07 é contestado
por antropólogos que atuam em comunidades
indígenas. O estudo de Marianna sugere que
as formas que cada povo desenvolve para resolver
seus conflitos internos devem ser respeitadas. “O
projeto impõe uma categoria jurídica
ocidental a uma diversidade de povos, desrespeitando
as diferenças e as especificidades”, afirma.
INTRUSÃO – Para a professora
Rita Segato, que orientou a dissertação
de mestrado de Marianna, o PL é uma forma
de “calúnia” aos povos indígenas.
“O projeto cria uma imagem absolutamente distorcida
da relação entre os índios
e suas crianças. Essa lei ofusca a realidade
e declara os índios bárbaros, selvagens,
assassinos. É muito semelhante à acusação,
comum em tempos passados, de que os comunistas comiam
criancinhas”, compara.
A docente lembra, ainda, que na
legislação brasileira o direito à
vida já está assegurado. “A Constituição
e o Código Penal preveem que é proibido
matar. Nesse aspecto, o PL é redundante”.
Segundo ela, o verdadeiro propósito da nova
lei não é zelar pela vida das crianças,
mas “permitir a vigilância e a intrusão
permanente nos costumes e na intimidade das aldeias”.
DIÁLOGO – A pesquisa também
aponta a necessidade de incluir os indígenas
nas discussões que lhes dizem respeito. “Não
se pode chegar a uma conclusão ou a um projeto
de lei sem a participação efetiva
dos maiores interessados: os índios. E eles
só foram ouvidos uma única vez, em
uma audiência pública em 2007, e mesmo
assim tiveram pouco espaço para falar”, conta
Marianna.
Para ela, o destino das crianças
que nascem com problemas graves e impeditivos de
qualquer tipo de socialização deve
ser resolvido pelos próprios indígenas.
“Eles acreditam que têm autonomia para resolver
seus problemas sozinhos – e se não acreditarmos
nessa capacidade, estaremos, ainda, colonizando”,
observa. “Deixar que eles encontrem seus caminhos
e tomem suas decisões é o mínimo
de autonomia que podemos fornecer”, reforça
a pesquisadora.
Rita Segato lembra que o Brasil
é signatário da Declaração
dos Direitos dos Povos Indígenas, aprovada
pela Organização das Nações
Unidas em 2007. “No documento está dito que
não se pode criar leis que afetem a vida
dos índios sem ter a participação
deles na discussão e elaboração
dessas leis. E esse requisito não foi respeitado
no PL que ora se apresenta”.
Segundo Rita, a Associação
Brasileira de Antropologia (ABA) já se manifestou,
pedindo o arquivamento do PL, que na Comissão
de Direitos Humanos tem a relatoria da deputada
petista Janete Rocha Pietá (SP).