29/10/2009 - Em decisão
política que contradiz seu próprio
parecer técnico, órgão oficial
indigenista considera empreendimento “viável,
observadas as condicionantes”, embora reconheça
que o EIA/Rima de Belo Monte não dimensionou
corretamente todos os impactos e tampouco apresentou
propostas concretas de como evitar ou diminuir aqueles
esperados sobre os povos indígenas da região.
A pressa é inimiga da perfeição.
Ou pelo menos do bom-senso. Pressionada pela Presidência
da República a liberar rapidamente a construção
da UHE Belo Monte, no Rio Xingu (PA), para que o
leilão de concessão possa ocorrer
ainda no primeiro semestre de 2010, a direção
da Funai acabou atropelando a análise de
sua equipe técnica e opinou favoravelmente
à construção da obra. Mesmo
sem esclarecer de que forma os gravíssimos
impactos socioambientais, previstos no EIA/Rima
e por sua equipe técnica, serão evitados
ou minimizados. (Veja aqui o ofício da Funai
ao Ibama).
O Parecer Técnico n°
21 – Análise do Componente Indígena
dos Estudos de Impacto Ambiental, de 30 de setembro,
destaca, entre outras coisas, a falta de estudos
e informações complementares que permitam
a completa avaliação dos impactos
sobre os povos indígenas; a manifestação
insistente de indígenas contra o empreendimento;
e a necessidade de consulta adequada aos povos afetados.
Apesar disso, decidiu pela viabilidade da usina
hidrelétrica, com as seguintes condicionantes:
1) que se defina uma vazão mínima
(“hidrograma ecológico”) a ser liberada no
trecho do rio Xingu situado entre a barragem e a
casa de máquinas que garanta a sobrevivência
dos peixes e quelônios e a navegabilidade
das embarcações dos povos indígenas
que ali vivem; 2) que sejam apresentados estudos
sobre os impactos previstos no Rio Bacajá,
na beira do qual vive o povo Xikrin, que possivelmente
sofrerá graves alterações mas
que não foi estudado no EIA; 3) que haja
"a garantia de que os impactos decorrentes
da pressão antrópica sobre as terras
indígenas serão devidamente controlados"
Impacto dimensionado, mas solução
negligenciada
A grande questão é
que todas essas informações são
fundamentais para avaliar a própria viabilidade
socioambiental do empreendimento. Um dos principais
impactos previstos pela equipe técnica da
Funai é o aumento da pressão sobre
os recursos naturais das diminutas terras indígenas
da região, que já sofrem com a exploração
madeireira, a caça e a pesca realizadas por
terceiros. Segundo o EIA serão atraídos
para a região pelo menos 96.000 pessoas,
o que levará ao aumento significativo dessas
atividades ilegais. Não há nesse estudo,
no entanto, a indicação de ações
concretas que deveriam ser tomadas para evitar esses
impactos, muito menos o seu dimensionamento em termos
financeiros. Há apenas a sugestão
de que “medidas apropriadas devem ser tomadas”.
O mesmo se diga para a vazão
ecológica a ser garantida ao Rio Xingu. Como
a barragem desviará as águas de um
trecho de cerca de 100 km do leito do rio (na chamada
Volta Grande), as condições ecológicas
do rio nesse trecho serão profundamente alteradas,
com impactos sobre a reprodução de
peixes, tartarugas, sobre as florestas e, obviamente,
sobre os povos indígenas que ali vivem, que
dependem diretamente desses recursos para sua sobrevivência
física e cultural. Para que o ecossistema
local não entre em colapso e as comunidades
indígenas não sejam obrigadas a abandonarem
suas terras é necessário garantir
um mínimo de água nesse trecho. Ocorre
que cada litro de água que passa pela barragem
faz falta na geração de energia 100
quilômetros abaixo. Para uma usina que, durante
a seca, produzirá pouco mais de 30% de sua
capacidade instalada mesmo com toda a água
sendo usada para geração, a definição
do “hidrograma ecológico” é fundamental
para saber inclusive da viabilidade econômica
da obra. Mas ele ainda não foi definido e
a Funai considerou a obra viável assim mesmo.
Falta de consulta adequada aos
povos indígenas
Mais gritante é a informação
sobre as consultas realizadas aos povos indígenas
que serão impactados, obrigação
do Estado em razão da Convenção
169 da OIT. Mesmo dizendo que as comunidades indígenas
“não apresentam consenso quanto à
implementação do AHE Belo Monte” e
que tampouco consideraram adequadas as consultas
realizadas, conclui que “… considera que cumpriu
seu papel institucional no processo de esclarecimento
e consulta junto às comunidades indígenas
(…) no decorrer do processo de Licenciamento, realizando
diversas oitivas nas aldeias.” Dessa forma, a consulta
se transformou em mera formalidade, uma etapa burocrática
a ser cumprida, sem nenhum significado real sobre
a decisão a ser tomada ou sobre qualquer
alteração no projeto ou nas medidas
de mitigação e compensação
ambiental. Essa conclusão desconsidera, inclusive,
a solicitação feita por diversas lideranças
indígenas ao Presidente Lula para que fossem
realmente ouvidos e suas opiniões levadas
em consideração, tal como dispõe
a Convenção 169 da OIT (saiba mais).
No início da semana, representantes
dos Povos Indígenas da região publicaram
Moção de repúdio ao Parecer
Técnico emitido pela Funai sobre a Usina
de Belo Monte. Veja aqui. Índios Kayapó
começaram nessa quarta-feira (28/10) uma
semana de protestos na comunidade de Piaraçú.
A expectativa é reunir mais de 200 indígenas
com representantes do Ministério de Minas
e Energia e do Ministério do Meio Ambiente.
Perguntas que não querem
calar
Diante de tão contraditória
posição é o caso de perguntar:
1) Como poderia a Funai justificar a viabilidade
de Belo Monte diante de um parecer que identifica
tantos impactos sobre os povos indígenas?
2) Como poderia a Funai, sem conhecer devidamente
todas as informações que permitiriam
a avaliação de impactos, manifestar-se
sobre a viabilidade? 3)Como poderia declarar que
a consulta foi realizada, ao mesmo tempo que afirma
que os povos indígenas afetados não
se consideram consultados?
Veja no quadro a transcrição
de alguns trechos do documento.
O que diz o parecer técnico
O Aproveitamento Hidrelétrico
de Belo Monte trará impactos aos povos indígenas
das terras Paquiçamba, Arara da Volta Grande/Maia,
Juruna Km17, Apyterewa, Araweté, Koatinemo,
Kararaô, Arara, Cachoeira Seca e Trincheira
Bacajá, além de indígenas que
estão nas cidades e os isolados.
O documento divide em dois os
principais vetores de impacto do AHE Belo Monte:
1) aqueles que são decorrentes
da obra e a geração de energia, como
a vazão reduzida no trecho da Volta Grande
do Rio Xingu, com impactos diretos sobre o transporte
fluvial, e efeitos em cadeia sobre as populações
de peixes, quelônios aquáticos e outros
elementos da fauna que fazem uso das florestas marginais
ou inundáveis;
2) aqueles associados à
atração de um contingente populacional
para a região com o subsequuente aumento
de pressão sobre os recursos naturais de
uma forma geral, resultando em invasões das
Terras Indígenas, bem como o esgarçamento
dos serviços sociais.
Impactos da obra
Sobre a obra, o parecer técnico
considera que os impactos de maior potencial para
afetar as comunidades indígenas estão
relacionados ao “trecho de vazão reduzida
da Volta Grande do Xingu, por conta do jusante do
barramento,” mais do que os efeitos causados pelo
reservatório do empreendimento.
Conclui que "a vazão
reduzida promovida pelo Projeto Belo Monte causará
uma reconfiguração no modo de vida
dos povos que habitam a Volta Grande do Rio Xingu.
Hoje, o cotidiano dos indígenas é
intimamente ligado ao rio, tanto para sua subsistência,
pelo consumo de pescado e outros animais aquáticos,
como na geração de renda, seja de
peixes ornamentais ou do pescado comercial.” (p.
90)
Explica o parecer que o “hidrograma
ecólógico” proposto no EIA-RIMA implica
uma redução do volume e do período
de cheias. Essa redução de vazão
causaria, entre outras coisas, o encurtamento da
fase entre a desova e criação e engorda
dos peixes e quelônios - importantes para
a subsistência das populações
indígenas. Além disso, cita a possível
proliferação de insetos, tais como
mosquitos, que encontram locais de procriação
nas poças de água parada e com a vazão
reduzida, tendo em vista que “poderá haver
a formação de poças no início
de cada época chuvosa, sem que haja o enchimento
correspondente do rio, de forma a conectar essas
poças ao ambiente aquático maior.”
(parecer p. 92)
Considera, ainda, que “a avaliação
técnica dessa matéria, por parte do
órgão ambiental licenciador, Ibama,
é essencial para a compreensão dos
impactos do empreendimento sobre as comunidades
indígenas da Volta Grande do Xingu e, por
consequência, para quaisquer formulações
de planos e programas de mitigação
e/ou compensação.” (parecer p. 92)
Impactos do contingente populacional
O maior impacto identificado até
o momento para as comunidades indígenas advém
do aumento do contingente populacional na região.
O parecer técnico identifica que a atração
de um contingente populacional à região
(96.000 pessoas, segundo o EIA), causado pelo AHE
Belo Monte, agravará a pressão sobre
os recursos naturais das Terras Indígenas
(TIs) – que já é critica na região
por conta do acúmulo de impacto de outras
obras previstas como a pavimentação
da Transamazônica BR163 e a construção
da linha de transmissão de Tucuruí
a Juruparí - ameaçando sua segurança
e proteção.
O aumento populacional que o empreendimento
trará para a região afeta também
as comunidades indígenas porque vai incentivar
um consequente “aumento da pesca e caça ilegal,
da exploração madeireira e garimpeira,
de invasão às TIs e da transmissão
de doenças.”
Identifica-se a situação
de vulnerabilidade de áreas que continuam
sendo ilegalmente ocupadas por não-índios,
como as TIs Arara da Volta Grande e Cachoeira Seca;
das ilhas no Xingu, que se encontram entre as Terras
Indígenas Paquiçamba e Arara da Volta
Grande do Xingu e que precisam ser declaradas de
usufruto exclusivo dessas comunidades indígenas;
e a necessidade de se estabelecer um corredor ecológico
ligando as Terras Indígenas Paquiçamba,
Arara da Volta Grande e Trincheira Bacajá.
O parecer técnico da Funai
conclui que sem “integração efetiva
de políticas públicas, o Projeto Belo
Monte corre o risco de não conseguir debelar
as pressões sobre recursos naturais e as
Terras Indígenas que poderão ser causadas
pelo fluxo migratório para a região.”
(parecer, p. 93). Apesar disso, a presidência
se posicionou pela viabilidade do empreendimento,
colocando tais preocupações como meras
condicionantes.