27/05/2010
Melissa Silva
Terra do mico-leão-dourado, da onça-pintada,
do bicho-preguiça. Enfeitada pela delicadeza
e a beleza das orquídeas, dos ipês,
dos jacarandás e, ao mesmo tempo, premiada
com a imponência dos jequitibás. Essas
são apenas algumas das riquezas naturais
da Mata Atlântica,
considerada patrimônio nacional pela Constituição
Federal e que, desde 1999, por meio de Decreto Presidencial,
ganhou um dia especial de comemorações:
27 de maio.
A data escolhida para o Dia Nacional
da Mata Atlântica faz referência a 27
de maio de 1560, dia em que o Padre Anchieta assinou
a Carta de São Vicente, documento no qual
descreveu, pela primeira vez, a biodiversidade das
florestas tropicais.
Em 2010 - instituído pela
ONU o Ano Internacional da Biodiversidade -, as
comemorações da Mata Atlântica
aconteceram em conjunto com a celebração
do Dia Internacional da Biodiversidade, em 22 de
maio.
Para a data, o Ministério
do Meio Ambiente (MMA) organizou o Seminário
sobre Sustentabilidade e Conservação
da Mata Atlântica, em São Paulo, no
Parque Ibirapuera, em parceria com o Conselho Nacional
da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica e
a Rede de ONGs da Mata Atlântica, e com o
apoio da GTZ - Projeto Proteção da
Mata Atlântica II, da SOS Mata Atlântica/Viva
a Mata e da Secretaria do Meio Ambiente de São
Paulo. Essas instituições integram
o Pacto pela Recuperação da Mata Atlântica,
que pretende recuperar 15 milhões de hectares
de matas até 2050.
O Seminário serviu para
solicitar aos candidatos às eleições
presidenciais deste ano que assumam compromissos
explícitos de proteção à
Mata Atlântica e apresentem posição
firme no cumprimento das metas de criação
de unidades de conservação e na recuperação
de Áreas de Preservação Permanente
(APPs), principalmente em topos de morros e às
margens dos rios, e das Reservas Legais dos imóveis
rurais.
No encontro, a Reserva da Biosfera
da Mata Atlântica entregou o Prêmio
Muriqui às entidades públicas e privadas
que se destacaram em benefício da proteção
da biodiversidade, do desenvolvimento sustentável
ou do conhecimento científico e tradicional
na Mata Atlântica. O prêmio foi instituído
em 1993 e já homenageou importantes nomes
que contribuíram na defesa da Mata Atlântica,
entre eles Paulo Nogueira Neto, José Lutzemberger
e Russell Mittermeier.
Recuperação urgente
- A Mata Atlântica é um dos conjuntos
de ecossistemas mais ricos em biodiversidade do
mundo. É composta por formações
florestais, além de campos naturais, restingas,
manguezais e outros tipos de vegetação
considerados ecossistemas associados. Sua área
original cobria cerca de 15% do território
nacional, uma superfície equivalente à
aproximadamente 1,3 milhões de Km².
Atualmente, a região da Mata Atlântica
concentra cerca de 120 milhões de habitantes,
abrange integral ou parcialmente quase 3.400 municípios
de 17 estados, inclusive as maiores metrópoles
do País, como Rio de Janeiro e São
Paulo.
Mesmo assim, é o conjunto
de ecossistemas mais alterado em sua cobertura original
devido à intensa exploração
econômica e ocupação, desde
o período colonial, com a especulação
do pau-brasil, o cultivo da cana de açúcar
e o inicio da mineração do ouro, seguido
do ciclo do café e da industrialização.
Reduzida a aproximadamente 27% de sua área
original e distribuída em milhares de pequenos
fragmentos, os remanescentes de vegetação
nativa ainda guardam altos índices de biodiversidade
de fauna e flora e prestam inestimáveis serviços
ambientais de proteção de mananciais
hídricos e de contenção de
encostas.
Segundo o recente levantamento
divulgado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
(Inpe) e pela Fundação SOS Mata Atlântica,
com dados do período entre 2005 e 2008, restaram
apenas 7,91%(102 mil km²) de área remanescente
bem conservada em fragmentos acima de 100 hectares
- a maior parte em propriedades privadas, concentrados
em regiões serranas e de difícil acesso
e exploração no Sul e Sudeste.
Das 396 espécies de animais
consideradas oficialmente ameaçadas de extinção
no Brasil, 350 são da Mata Atlântica.
Em 1989, esse número era 171. Atualmente,
a Mata Atlântica é detentora de 65%
das espécies da fauna e de mais de 50% das
espécies da flora brasileira ameaçadas
de extinção. No caso das aves, um
estudo publicado pela revista britânica Nature,
aponta que pelo menos 88 espécies de aves
endêmicas da Mata Atlântica estão
ameaçadas.
Com tantas riquezas, mas também
com tantas fragilidades, a situação
delicada da Mata Atlântica requer conservar
o que restou, e principalmente investir em políticas
de recuperação. Para isso, o Programa
da Mata Atlântica do MMA conta com o apoio
financeiro do governo alemão que irá
investir seis milhões de euros nesta fase
inicial, que vai de 2010 a 2012, para consolidar
o Sistema de Unidades de Conservação
e Áreas Protegidas da Mata Atlântica;
recuperar ecossistemas alterados e áreas
remanescentes; e promover o uso sustentável
dos recursos naturais da região.
Parte dos recursos será
aplicada para fomentar os planos municipais de recuperação
e uso da Mata Atlântica. A idéia é
orientar tecnicamente e criar o estímulo
necessário para que os municípios
se antecipem e iniciem a elaboração
e a execução de seus planos, pois,
mesmo que se trate de um processo voluntário,
os planos municipais estão previstos na Lei
da Mata Atlântica (nº 11.428, de 2006)
e são pré-requisito para que os prefeitos
acessem os recursos do Fundo Mata Atlântica,
já em processo de regulamentação.
De acordo com o diretor de Florestas
do MMA, João de Deus, a lei prevê que
os municípios façam os planos sozinhos,
buscando recursos de parceiros. "Como a Mata
Atlântica passou por um processo de intervenção
muito acentuado e hoje o percentual de remanescentes
está muito distante do mínimo entendido
como satisfatório para garantir a manutenção
a longo prazo dos processos ecológicos -
em torno de 35% a 40% da biologia da conservação
-, acredito que é necessário fazermos
um grande pacto entre sociedade civil, órgãos
governamentais e, principalmente, com os municípios",
ressalta o diretor, lembrando que os prefeitos interessados
podem buscar apoio do Fundo Nacional do Meio Ambiente,
e do próprio Programa Mata Atlântica.
Conquistas - Com a aprovação
das últimas resoluções do Conselho
Nacional do Meio Ambiente (Conama), no final de
2009 e início de 2010, o MMA conseguiu concluir
todo o processo de regulamentação
da Lei Mata Atlântica. Foram instituídas
regras para as vegetações que faltavam:
restinga (nº 417/2009) e campos de altitude
(nº 423/2010). "Hoje podemos dizer que
Lei da Mata Atlântica está com plena
condição de ser operada em toda a
sua dimensão", afirma João de
Deus.
Para entender
Restinga é um conjunto
de ecossistema onde se encontra vegetação
herbácea, arbustiva, arbórea ou de
mata de restinga, todas sob influência marinha
e fluvio-marinha, como praias e dunas, cordões
arenosos, depressões associadas, planícies
e terraços. O corte da vegetação
ocasiona uma reposição lenta, geralmente
de porte e diversidade menores. Dada a fragilidade
desse ecossistema, a vegetação exerce
papel fundamental para a estabilização
de dunas e mangues, assim como para a manutenção
da drenagem natural.
Campo de altitude é um
tipo de ecossistema que está associado com
ambientes montano e alto montano. Pelo IBGE, a faixa
de altitude que define esse ambiente varia em três
faixas. Na região Sul campo de altitude ocorrem
acima de 400 metros. Na região Sudeste acima
de 500 metros e no Nordeste acima de 600. São
áreas campestres, de vegetação
herbácea, subarbustiva, que ocorre em relevos
mais altos, de serra, de morros.
Na prática, a aprovação
das Resoluções do Conama acaba com
uma situação de tensão que
havia, pois os órgãos ambientais não
podiam licenciar nada nessas áreas enquanto
não existisse a regulamentação
prevista na lei. "Agora a lei permite licenciar
para campos de altitude e restinga, que podem ter
conversões desde que a vegetação
esteja em estágio inicial. Se a vegetação
estiver em estágio médio ou avançado
existem algumas limitações, como o
licenciamento para áreas de utilidade pública
ou interesse social. O que a lei veda é a
conversão de remanescentes que sejam caracterizados
como primário ou em estágio avançado",
explica João de Deus.
Para entender
Primária é a vegetação
original, aquela que não foi alterada e a
lei protege quase que integralmente, salvo em casos
excepcionais de utilidade pública ou interesse
social.
A secundária é a
vegetação que já foi suprimida
e depois a área foi abandonada e ela começa
naturalmente a se regenerar e vai passando por vários
estágios: inicial, médio e avançado.
Na secundária inicial é
possível mexer em qualquer situação,
pode inclusive converter e fazer licenciamento.
A média já tem limites. Pode, mas
com certas condições. A avançada
segue o mesmo raciocínio da primária.
A grande importância das
Resoluções é que elas definem
tecnicamente e de forma clara como classificar essa
vegetação, já que lei estabelece
os limites de uso com base nessa caracterização.
"Entre 2009 para 2010 houve um ganho importante
ao completar essa regulamentação,
não só para a segurança jurídica,
mas principalmente para dar efetividade à
lei", comemora o diretor.
Outra conquista é uma proposta
de resolução que trata da metodologia
de recuperação de Áreas de
Preservação Permanente (APPs) que
deve ser votada em plenária do Conama em
agosto. "No entanto, já podemos comemorar
o feito de ter sido concluído esse processo
de discussão muito delicado e que começou
em 2007. Para os planos municipais de recuperação
de Mata Atlântica é essencial, pois
essa Resolução vai estabelecer parâmetros
claros de como se deve proceder, do ponto de vista
metodológico, para fazer a recuperação
dessas áreas", diz João.
Atualmente, o processo é
muito burocrático para quem deseja fazer
voluntariamente recuperação de APP,
o que acaba sendo desestimulante. "Isso porque
o cidadão corre o risco de ser autuado por
fazer intervenção indevida em APP",
explica o diretor. Para não correr o risco
de ser autuado pelo Ibama, pela Polícia,
ou pelo órgão ambiental estadual,
o caminho é contratar um técnico para
fazer um projeto registrado em órgão
ambiental e solicitar licença ambiental para
recuperar a APP.
"Entendemos que isso é
um contra-senso. O cidadão que quer voluntariamente
ajudar a recuperar APP está sujeito a ser
multado. A Resolução subverte esse
processo. Primeiro para eliminar esses entraves
de ordem burocrática que não se justificam.
Depois, pelo caráter pedagógico, pois
traz um procedimento que serve de instrumento de
orientação técnica para que
as pessoas, mesmo voluntariamente, seguindo a Resolução,
tenham um padrão que garanta a efetividade
desse processo, até para evitar que sejam
feitos investimentos inadequados que dêem
retorno pequeno de preservação",
destaca o diretor.
Além disso, quando for
aprovada pelo Conama, a Resolução
permitirá que o proprietário, seja
ele pequeno, médio, ou grande - que de alguma
maneira degradou área de APP e, por isso,
tem um passivo ambiental, conforme o Código
Florestal -, tenha condições de, seguindo
as orientações da norma, liquidar
esse passivo.
Para a secretária de Biodiversidades
e Florestas do MMA, Maria Cecília Wey de
Britto, medidas como essas demonstram que, mesmo
sendo a região mais ameaçada e fragmentada,
a reversão do atual cenário da Mata
Atlântica já é uma história
de sucesso da sociedade. "Nos últimos
20 anos, a sociedade civil tem pressionado os governos
federal, estaduais e municipais para regulamentar
um arcabouço jurídico que impeça
o desmatamento e, simultaneamente, estimule pesquisa
científica e a criação de unidades
de conservação."
Segundo ela, este tipo de movimento
já colhe resultados positivos, como o aumento
de mata nativa em algumas áreas de vegetação
remanescente, como em São Paulo, por exemplo.
"Com o apoio de inúmeras instituições
públicas e privadas estamos saindo de uma
situação caótica para um cenário
que permite vislumbrar presságios de boas
perspectivas de melhora", explica.
Ocupação irregular
- A maior parte das áreas sensíveis
no Brasil está em área de ocorrência
da Mata Atlântica e tem uma vinculação
direta com o relevo acidentado. O mapa digital do
terreno do Brasil mostra que temos uma topografia
relativamente plana na maior parte do território
e uma área de escarpas extremamente acentuadas
na faixa litorânea.
Na Mata Atlântica existem
esses terrenos de maior inclinação
e, consequentemente, maior suscetibilidade a escorregamentos
e deslizamento de blocos de rocha. O resultado são
os desastres recentes e sucessivos nessas áreas
de urbanização que ocorreu de forma
inadequada e irregular.
Com os graves casos de desabamentos
no Rio de Janeiro e de inundações
em São Paulo ocorridos esse ano, o diretor
João de Deus percebe que, pela primeira vez,
mudou de foco a postura do Governo que, de modo
geral, sempre teve a tendência de procurar
medidas para regularizar essas ocupações
e acabar com a ilegalidade.
"Hoje não é
uma questão simplesmente de formalizar, de
regularizar, mas avaliar que em determinadas áreas
a ocupação se deu de forma inadvertida
e regularizar significa manter as pessoas num risco
que é inadmissível. Apesar de impopular
e difícil de implementar, já é
percebido que é necessário assumir
a remoção das ocupações
em áreas inadequadas", adverte João.
Publicação - Além
de cuidados, a exuberância da vegetação
e as belezas cênicas também inspiram
a necessidade de disseminar informações
sobre o bioma. Para isso, a Secretaria de Biodiversidades
e Florestas (SBF) do MMA reuniu em 408 páginas
o conhecimento que existe sobre modelos de conservação,
de valorização e de utilização
sustentável da biodiversidade e do patrimônio
genético no livro Mata Atlântica -
Patrimônio Nacional dos Brasileiros.
A publicação está
concluída e deve ser lançada no início
de junho, junto com as comemorações
da Semana do Meio Ambiente. Ao todo serão
impressos 10 mil exemplares e a distribuição
será feita pelo CID - Ambiental do MMA para
prefeituras, escritórios regionais do ICMBio
nas unidades de conservação, para
parceiros da Rede ONGs da Mata Atlântica e
também para autoridades dos três poderes.
O livro traz informações
importantes para o planejamento e desenvolvimento
de políticas públicas e demonstra
que enchentes e deslizamentos de terra, como os
ocorridos em Santa Catarina no final de 2008 e em
Angra dos Reis e São Paulo no início
de 2010, são exemplos dos problemas provocados
pela falta de planejamento e ocupação
inadequada das áreas de risco, muitas delas
consideradas APP, como é o caso das encostas
com declividade superior a 45º, dos topos de
morro e das margens de nascentes, riachos e rios.
O coordenador do Núcleo
Mata Atlântica e Pampa da SBF, Wigold Schäffer,
responsável pela organização
do livro e um dos principais colaboradores da publicação,
esclarece que o objetivo é mostrar as experiências
bem sucedidas que estão sendo implementadas
nos estados em termos de conservação
e o uso sustentável. Também tem o
objetivo de motivar ações de recuperação
da biodiversidade, haja vista os altos índices
de biodiversidade mesmo na pequena área de
vegetação remanescente.
"O livro mostra o lado positivo
do que está sendo feito e prova que podemos
reverter a degradação dos 500 anos
do modelo econômico que optamos, por outros
500 anos dedicados à recuperação
e desenvolvimento sustentável, inclusive
com a participação dos cidadãos",
destaca Wigold.
Segundo ele, isso não é
difícil. "A recuperação
é extremamente rápida. Apenas interrompendo
a degradação e contando somente com
a reação da própria natureza,
a vegetação nativa volta num período
de três a cinco anos, o que já garante
alguns dos principais serviços ambientais,
como a proteção dos recursos hídricos
e das encostas", garante. Para acelerar o processo,
uma alternativa é plantar mudas de espécies
nativas pioneiras que são de crescimento
mais rápido e, ao mesmo tempo, reintroduzir
outras espécies que teriam dificuldade de
nascer tão rapidamente no local, aumentando
assim a biodiversidade.