As duas associações
que representam a comunidade científica brasileira
falam como proposta de mudança do Código
Florestal é nociva para o país.
Os ruralistas adoram falar que
têm a ciência do seu lado ao propor
mudanças no Código Florestal – a saber,
redução de áreas de preservação
permanente (APPs), como mata nas margens de rios
e topos de morro, e da reserva legal, quando não
pregam seu fim. A verdade, contudo, está
bem distante.
Os dois principais grupos representativos
da classe científica no Brasil – a Sociedade
Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC)
e a Academia Brasileira de Ciências (ABC)
– divulgaram uma carta conjunta repudiando o relatório
apresentado pelo deputado Aldo Rebelo (PCdo-B-SP),
aprovado na semana passada pela comissão
que tratou do tema na Câmara apesar da oposição
de diversos setores da sociedade civil, inclusive
as ONGs.
O presidente da SBPC, Marco Antonio
Raupp, e da ABC, Jacob Palis, afirmam que a comunidade
científica não foi de fato consultada
no processo, ao contrário do que Aldo afirma,
e que a proposta “foi pautada muito mais em interesses
unilaterais de determinados setores econômicos”.
“Se os ruralistas de fato tivessem
a preocupação em montar uma proposta
séria de reforma do Código Florestal,
deixariam de lado seus cientistas de aluguel e passariam
a ouvir quem faz e entende mesmo de ciência
no Brasil, representados por esses dois grupos,
SBPC e ABC”, afirma Paulo Adario, diretor da campanha
da Amazônia do Greenpeace.
Leia a seguir a íntegra
da carta conjunta, também disponível
no site da SBPC.
"Senhor Deputado,
O Brasil foi o primeiro país
do mundo a buscar uma agricultura tropical altamente
produtiva, fruto principalmente de investimentos
contínuos em ciência e tecnologia.
Com o aumento da produtividade das principais culturas
agrícolas, a agricultura brasileira ganhou
destaque mundial e passou a contribuir, decisivamente,
para o desenvolvimento econômico e social
do país, produzindo alimentos, fibras e bioenergia
para o consumo interno e para exportação.
O Brasil já é uma
potência agrícola, mas deve ser observado
que o paradigma predominante em outras potências
agrícolas do mundo desenvolvido é
o do aumento da produtividade e não da expansão
das fronteiras agrícolas. A competitividade
se dá no terreno de maior inserção
de ciência e tecnologia na produção
e maior agregação de valor nas cadeias
produtivas agrícolas e pecuárias.
Paralelamente, o Brasil ainda
preserva grandes áreas intactas que abrigam
uma extensa gama de formas de vida, caracterizando
o país como detentor de uma megabiodiversidade.
Portanto, o país tem a chance única
na história de conciliar uma agricultura
altamente desenvolvida com vastos ecossistemas naturais
preservados e ou conservados que produzem uma gama
de serviços ambientais dos quais a própria
agricultura depende, dentre eles se destacam a manutenção
da fertilidade dos solos e suas propriedades físicas
e a produção e sustentabilidade dos
regimes hídricos dos ecossistemas.
Editado em 1965, e substancialmente
reformulado em 1989, o Código Florestal,
constitui-se até hoje na peça fundamental
de uma legislação ambiental reconhecida
com uma das mais modernas do mundo. Ainda passível
de aperfeiçoamentos como qualquer legislação,
o Código Florestal é um arcabouço
legal fundamental na manutenção de
paisagens multi-funcionais que permitam seu aproveitamento
tanto para a produção de alimentos,
fibras e bioenergia; como também para preservação
e manutenção dos ecossistemas, com
amplos benefícios para toda a população.
Baseando-se na premissa errônea
de que não há mais área disponível
para expansão da agricultura brasileira,
o Congresso brasileiro propôs, recentemente,
uma reformulação do antigo Código
Florestal.
Infelizmente, a reformulação
desse Código não foi feita sobre a
égide de uma sólida base científica,
pelo contrário, a maioria da comunidade científica
não foi sequer consultada e a reformulação
foi pautada muito mais em interesses unilaterais
de determinados setores econômicos.
Em decorrência, a comunidade
científica brasileira se encontra extremamente
preocupada frente às mudanças propostas,
pois esta comunidade antevê a possibilidade
de um aumento considerável na substituição
de áreas naturais por áreas agrícolas
em locais extremamente sensíveis como são
as áreas alagadas, a zona ripária
ao longo de rios e riachos, os topos de morros e
as áreas com alta declividade.
As mudanças do Código
Florestal igualmente poderão acelerar a ocupação
de áreas de risco em inúmeras cidades
brasileiras, estimular a impunidade devido a ampla
anistia proposta àqueles que cometeram crimes
ambientais até passado recente e a oportunidade
de Estados brasileiros utilizarem a prerrogativa
de legislar sobre temas ambientais para atrair futuros
investimentos associados a mais degradação
ambiental no meio rural.
Esta substituição
levará, invariavelmente, a um decréscimo
acentuado da biodiversidade, a um aumento das emissões
de carbono para a atmosfera, no aumento das perdas
de solo por erosão com consequente assoreamento
de corpos hídricos, que conjuntamente levarão
a perdas irreparáveis em serviços
ambientais das quais a própria agricultura
depende sobremaneira, e também poderão
contribuir para aumentar desastres naturais ligados
a deslizamentos em encostas, inundações
e enchentes nas cidades e áreas rurais.
Assim sendo, a comunidade científica
reconhece claramente a importância da agricultura
na economia brasileira e mundial, como também
reconhece a importância de aperfeiçoar
o Código Florestal visando atender a nova
realidade rural brasileira.
Entretanto, entendemos que qualquer
aperfeiçoamento deva ser conduzido à
luz da ciência, com a definição
de parâmetros que atendam a multi-funcionalidade
das paisagens brasileiras, compatibilizando produção
e conservação como sustentáculos
de um novo modelo econômico que priorize a
sustentabilidade.
Desta forma podemos chegar a decisões
consensuais, entre produtores rurais, legisladores,
e a sociedade civil organizada, pautadas por recomendações
com base científica, referendadas pela academia
e não a decisões pautadas por grupos
de interesses setoriais, que comprometam de forma
irreversível nossos ecossistemas naturais
e os serviços ambientais que desempenham."