Matéria do Estado de S.
Paulo de hoje anuncia: enriquecimento de urânio
ganha verba extra no Brasil. Está liberado
orçamento do próximo
governo para o ciclo do combustível nuclear,
acobertado pelo argumento de possíveis exportações
de urânio e daquele velho lema militar de
soberania.
O carro-chefe é a retomada
do programa nuclear brasileiro, calcada na controversa
construção de Angra 3, usina defasada
do ponto de vista de engenharia e segurança,
que fere diversas normas internacionais, para as
quais a Comissão Nacional de Energia Nuclear
(CNEN) parece ter fechado os olhos para expedir
a licença.
Não há justificativas
do ponto de vista ambiental, social, econômico,
energético, que sustentem essa insistência
na expansão do parque nuclear. Mas agora
que a nuvem radioativa esvanece, começamos
a perceber os motivos de tal aventura, certamente
os mesmos que fizeram o Brasil defender arduamente
o programa nuclear do Irã, contrariando quase
que sozinho toda a comunidade internacional e os
próprios brasileiros.
James Lovelock, autor da teoria
de Gaia e defensor da energia nuclear, desaconselhou
o uso dessa fonte para o Brasil, dizendo que “para
determinar a maneira mais eficiente e mais responsável
de gerar energia em um país é preciso
olhar as condições particulares de
cada região. E eu creio que esta [nuclear]
não seja a melhor opção para
o Brasil”.
O ministro de Assuntos Estratégicos,
embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, até
tentou defender o uso desta energia sob o já
desbancado argumento de que a tecnologia seria a
solução para o problema das mudanças
climáticas (Valor, 11/6/10, A14). Infelizmente,
a preocupação com o clima era apenas
outra camuflagem para a estratégia que o
governo Lula montou a fim de fazer do país
uma potência atômica.
O passo-a-passo
A primeira etapa dessa estratégia
se deu pela contestação do Itamaraty
à adesão do Brasil ao Protocolo Adicional
do Tratado de Não Proliferação
Nuclear (TNP), escorada justamente nas argumentações
do embaixador quando era o seu Secretário
Geral: “O Brasil não deve aceitar normas
internacionais que contrariem ou criem empecilhos
a seus interesses fundamentais de reduzir as desigualdades,
de eliminar as vulnerabilidades e de realizar seu
potencial. A reserva brasileira ou a ausência
do Brasil de qualquer negociação não
provocará nada de arrasador para o Brasil,
publicou em Desafios Brasileiros na Era dos Gigantes
(pg 297).
A segunda etapa se deu com a celebração
de termos de cooperação para transferência
de material nuclear e conhecimento com a Rússia,
Índia, China, França e Turquia, que
permitem ao país estabelecer as bases de
um fecundo mercado para exportar urânio, minério
do qual, como afirmou o ministro, possuímos
uma das maiores jazidas do mundo. Essa, mais do
que a propalada preocupação com a
paz mundial, é a verdadeira motivação
para a nossa participação no imbróglio
iraniano e uma boa justificativa econômica
para o Brasil enfrentar todos em nome do enriquecimento.
A terceira etapa se relaciona
com a reativação do Programa Nuclear
Brasileiro, marcada pelo anúncio da construção
da usina nuclear de Angra 3 e a intenção
de construir outras usinas nucleares no Nordeste.
Embora o argumento do governo seja de que essas
usinas são para fornecer energia, o setor
nuclear no Brasil opera à moda de um complexo
industrial-militar, onde as suas partes, independente
de estarem na mão de civis ou militares,
integram a estratégia geral de domínio
de uma tecnologia.
O dinheiro empregado na construção
das novas usinas nucleares permitirá a lubrificação
de todas as engrenagens desse complexo que estavam
emperradas desde o fim da ditadura nos anos 80,
a começar pelo estímulo para a formação
de novos técnicos na área. Isso, sem
falar que a cada usina que construímos aumentamos
o volume de urânio que produzimos, engordando
o saldo com que esperamos entrar definitivamente
como sócio no Clube Atômico.
Por fim, o uso da tecnologia nuclear
para fins militares. A Estratégia Nacional
de Defesa lançada pelo governo em 2008, afirma:
“Projeto forte de defesa favorece projeto forte
de desenvolvimento. Não é independente
quem não tem o domínio das tecnologias
sensíveis, tanto para a defesa como para
o desenvolvimento”. O problema é saber onde
vamos parar, porque o começo já foi
anunciado com a construção dos submarinos
movidos a propulsão nuclear. Embora a Constituição
diga que toda atividade nuclear somente será
admitida para fins pacíficos, o assunto está
longe de ser considerado um tabu.
Além do ministro Samuel
Pinheiro, contrário ao TNP, o vice-presidente
José Alencar se disse a favor do Brasil possuir
a bomba atômica como “fator de dissuasão”
e “para dar mais respeitabilidade ao país”.
Nem o enredo, nem os atores são novos. O
Brasil, ao final da ditadura, tinha um programa
nuclear paralelo que continuou a operar durante
o governo Sarney. Se na ditadura o programa ficava
dividido entre os ministérios militares,
no governo da chamada Nova República ele
foi abrigado no recém criado Ministério
da Ciência e Tecnologia (MCT), chefiado por
Renato Archer.
Archer, em seu livro “Energia
Atômica, Soberania e Desenvolvimento”, conta
que a “figura central da história do programa
paralelo é o almirante Othon Luiz Pinheiro
da Silva” (página 155), atual presidente
da Eletronuclear, responsável pela construção
de Angra 3.Trabalharam com Archer no MCT o atual
presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES), Luciano Coutinho,
Secretário Executivo do ministério,
e o ministro Celso Amorim, que foi Secretário
de Relações Internacionais.
Além disso, a estrutura
do setor nuclear no Brasil é a mesma da ditadura,
cabendo à Comissão Nacional de Energia
Nuclear (CNEN), exercer o papel de fiscalizar e
ao mesmo tempo fomentar o uso da energia nuclear.
Isso contraria tratados que o país assinou,
que determinam a separação desses
papéis, deixando o Brasil na companhia do
Irã e do Paquistão, únicos
países onde isso ainda ocorre. Formar um
eixo com o Irã e o Paquistão na área
nuclear não deveria fazer parte do nosso
ideário de liderança na arena das
relações internacionais.
Para o professor José Goldemberg,
mesmo que fossem construídas três mil
usinas nucleares no mundo nos próximos 10
anos, hipótese inviável em razão
do custo financeiro e ambiental, esse tipo de energia
não serviria para minimizar os impactos das
mudanças climáticas. Além do
problema insolúvel do tratamento do lixo
radioativo, ela emite mais gases de efeito estufa
do que fontes limpas e renováveis como eólica,
hídrica e solar. O kilowatt-hora gerado por
uma usina atômica produz até 400 gramas
de CO2 equivalente, enquanto um parque eólico
produz no máximo 50 gramas.
É preciso que o governo
esclareça as reais intenções
do seu programa nuclear, reconhecendo a relevância
do controle das suas atividades, a ser exercido
pelo Congresso Nacional, como determina a nossa
Constituição. Só o debate democrático
e livre, calcado em ampla informação,
permitirá a sociedade tomar conhecimento
dos problemas do uso da energia atômica.