Em
viagem pelo interior do Brasil, engenheiro
florestal vê sequência de paisagens
devastadas e explica porque as florestas são
essenciais para a segurança da população.
Em verde, o que sobrou de
floresta: a região jà perdeu
cerca de 70% da mata.
Poucas semanas antes da
tragédia na região serrana,
Miguel Milano cruzou o Brasil do Sul ao Nordeste,
por estradas do interior. Foi de férias.
Mas para um engenheiro florestal de 30 anos
de carreira, a paisagem não passa despercebida.
“Vi uma seqüência de morros pelados,
rios sem florestas nas margens, raros remanescentes
de florestas extremamente depauperadas”, lista
o doutor em ciências florestais que
lecionou na Universidade Federal do Paraná
e na Colorado State University. “A degradação
é generalizada”.
Em entrevista ao Greenpeace,
o ex-diretor executivo da Fundação
Boticário de Proteção
à Natureza e criador dos congressos
brasileiros de Unidades de Conservação
fala de como as matas são fundamentais
para a proteção dos solos, do
clima e da própria população.
Principalmente em margens de rios e encostas
de morros. “As Áreas de Preservação
Permanente (APPs) são uma questão
de segurança pública”.
Qual foi o roteiro da sua
viagem?
Saí de Curitiba [Paraná], passei
por São Paulo, Rio de Janeiro e Minas
Gerais até chegar à Bahia. Foram
três dias na ida, três na volta.
Rodei pouco mais de cinco mil quilômetros,
pegando estradas pelo interior. Na volta,
desci pelo interior do Espírito Santo
mas tive que voltar pelo litoral, porque em
Santa Maria de Jetibá [Espírito
Santo] as chuvas já provocavam enchentes
com quedas de barreiras, pontes submersas
e rodovias bloqueadas.
O que você viu pelo
caminho?
Fui de férias. Mas quando você
sai de férias e tem 30 anos de experiência
e estudo não consegue passar batido
por certas coisas. Vi uma seqüência
de morros pelados, rios sem florestas nas
margens, muita área degradada, raros
remanescentes de florestas extremamente depauperadas
em fazendas de evidente baixíssima
produtividade. Vi morro com tanta erosão
que mais parecia bola de sorvete derretendo
no sol, e isso ainda antes das chuvas, na
viagem de ida. Imagine o que é agora.
Onde ainda tem um pouco de floresta, de mata,
ela provavelmente vai dar lugar ao gado, como
é possível ver em algumas regiões
da Bahia. A degradação é
generalizada, e tudo resultado do uso errado,
além de excessivo, ao longo do tempo.
Aquilo tudo é um contrato com a desgraça,
senão hoje, amanhã.
Nos municípios da
região serrana do Rio onde centenas
de pessoas morreram e a produção
agrícola foi prejudicada, cerca de
70% da mata nativa já não existe.
O que isso tem a ver com os deslizamentos
e enchentes?
Tem tudo a ver. Quando chove demais, a falta
de vegetação natural, ainda
mais em regiões naturalmente instáveis
como as encostas de serra, piora tudo e as
conseqüências são mais graves.
A cobertura florestal dá uma enorme
proteção ao solo. Primeiramente
interceptando a chuva e reduzindo seu impacto
sobre o solo. Depois, reduzindo a velocidade
tanto de escoamento superficial quanto de
infiltração no solo, isto devido
aos diferentes estratos de vegetação
viva e também à camadas de folhas
e galhos mortos. E por fim, tem as raízes
que ajudam a estruturar e segurar o solo e
também blocos de rochas em áreas
de declives acentuados. A vegetação
traz um equilíbrio fantástico.
Nas áreas desmatadas,
há muito mais escorrimento superficial,
que provoca erosão, assim como um mais
rápido encharcamento do solo, que quando
saturado tende a deslizar na forma de quedas
de barreiras. Isso tudo leva ao assoreamento
dos rios, que favorece a ocorrência
das enchentes e as perdas que já conhecemos:
humanas e materiais. Não tenho dúvidas
de que uma avaliação criteriosa
na região afetada certamente indicará
que as áreas mais atingidas, mesmo
que eventualmente com florestas, têm
desmatamentos acima, dos lados ou danos severos
na base da encosta. Isto sem mencionar que,
potencialmente, parte importante do desastre
está associado a áreas de preservação
permanente de rios não respeitadas.
É muito mais difícil esses “acidentes”
acontecerem em locais com cobertura vegetal
nativa, pelo menos nestas proporções.
Com as mudanças climáticas,
a manutenção das florestas nessas
áreas torna-se ainda mais necessário?
A tendência das mudanças climáticas
é de maior ocorrência de eventos
extremos, cheias mais intensas e também
mais secas intensas. A combinação
entre chuvas mais fortes e áreas desmatadas
com certeza vai gerar mais tragédias
como essa. O Código Florestal teve
a felicidade de criar mecanismos como a Reserva
Legal e as Áreas de Preservação
Permanente (APP), ímpares no mundo,
exigindo a manutenção das florestas.
As APPs são uma questão de segurança
pública, seja no meio rural ou no meio
urbano.
Além da proteção
que as matas oferecem ao solo, ainda tem a
questão das emissões por desmatamento,
os serviços ambientais...
As florestas proporcionam vários fatores
de estabilidade para o ambiente como um todo.
Uma árvore grande, por exemplo, pode
transpirar até 200 ou mesmo 250 litros
de água por dia. De onde vem a água?
Do solo. E para onde vai? Para a atmosfera.
Se começa a haver um desmatamento exagerado,
o regime das chuvas é afetado. Se tem
árvore, tem transpiração,
e isso faz bem para o clima e para a própria
agricultura, que precisa de chuva. Os ruralistas
que querem mudar o Código Florestal
deviam é pagar para manter a floresta
de pé e assim manter regimes de chuva
minimamente estáveis, que é
condição essencial à
viabilidade do seu próprio negócio,
o agronegócio. Precisamos das florestas
para ter estabilidade no ambiente. E a outra
questão, da emissão, é
mais óbvia ainda. Em pé, as
matas capturam e estocam carbono. Derrubadas,
não só deixam de prestar este
serviço como emitem carbono, alimentando
o ciclo das mudanças climáticas.
É necessário
mudar o Código Florestal?
Muito antes de pensar em mudar o Código
Florestal, penso que a sociedade tem de exigir
o seu cumprimento. Não é possível
perdoar o passivo ambiental criado por quem
não a cumpriu e ainda flexibilizar
uma lei que é fundamental para a segurança
de todos. Isso não faz sentido no tempo
em que estamos vivendo. Além disso,
há uma outra questão: a de se
apresentar e discutir a proposta de revisão
do código florestal como uma questão
rural, que não tem nada a ver como
o meio urbano. Isso é uma falácia,
que só interessa quem quer rasgar a
lei. O código florestal, tal como existe
hoje, respeitado no meio rural é uma
segurança para o meio urbano, onde
vivem mais de 80% dos brasileiros, e evitaria
muita da tragédia que estamos vivenciando.
Dizer o contrário é tentar rasgar
e pisar na lei em benefícios de uns
poucos, e prejuízo da absoluta maioria
da nossa população.