31/05/2011 - Desde 1985, Amazônia
foi palco de mais de mil assassinatos de trabalhadores
rurais e lideranças defensoras de direitos
humanos. O Pará respondeu por
mais de 600 casos. Ministério Público,
movimentos sociais e organizações
da sociedade civil cobram presença do Estado
para atuar sobre as causas sociais do problema
Em menos de uma semana, três
lideranças do movimento social e um trabalhador
rural foram assassinados na Amazônia. No sábado,
o agricultor Herenilton Pereira dos Santos foi encontrado
morto, com marcas de balas, no Projeto de Assentamento
Agroextrativista (PAE) Praialta Piranheira, em Nova
Ipixuna, no sudeste do Pará.
O corpo estava a cerca de sete
quilômetros do local onde foram assassinados,
na última terça-feira (24/5), José
Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito
Santo da Silva, casal que denunciava há vários
anos a ação de madeireiras e carvoarias
ilegais. Parte de uma orelha de Zé Cláudio
foi arrancada, provavelmente como comprovação
do serviço exigida pelo mandante.
Na manhã da sexta-feira
(27/5), Adelino Ramos foi morto a tiros em Vista
Alegre do Abunã, distrito de Porto Velho
(RO). Ele lutava pela reforma agrária e também
denunciava o desmatamento ilegal no limite entre
Rondônia e Amazonas. Um suspeito do crime
foi preso.
As circunstâncias dos quatro
assassinatos escancaram, mais uma vez, o quadro
de violência contra lideranças que
defendem a reforma agrária, os direitos humanos
e a floresta amazônica. E também apontam
para a ineficiência do Estado em protegê-las.
De 1985 a 2010, segundo a Comissão
Pastoral da Terra (CPT), 1.580 pessoas foram assassinadas
no Brasil por causa de conflitos no campo. Na Amazônia
Legal, ocorreram 1.033 casos. O Pará, campeão
no número de assassinatos, respondeu por
621 mortes. Em Rondônia, onde morreu Adelino
Ramos, 72 pessoas foram mortas.
Em 2010, havia em todo Brasil
125 pessoas ameaçadas de morte por defender
os direitos de pequenos agricultores e trabalhadores
rurais – 83 delas moravam na Amazônia Legal.
Adelino Ramos foi um dos sobreviventes
do massacre de Corumbiara (RO), em 1995, quando
12 trabalhadores rurais foram assassinados. Segundo
a CPT, ele vinha recebendo ameaças. Seu filho,
Claudemir Gilberto Ramos, também uma liderança
da luta pela reforma agrária, está
jurado de morte. Por causa disso, pai e filho não
se veem há dez anos.
A CPT levantou a suspeita de que
as mortes de Herenilton dos Santos, Zé Cláudio
e Maria estejam relacionadas. Santos seria uma possível
testemunha por ter visto os assassinos do casal.
Ele estava desaparecido desde quinta-feira. A CPT
questionou a ação das polícias
civil e federal, cuja presença no PAE Praialta
Piranheira logo após os dois primeiros assassinatos
não foi suficiente para evitar um novo crime
(saiba mais).
Em 2008, os nomes de Zé
Cláudio e Maria foram incluídos num
levantamento patrocinado pela Defensoria Pública
do Pará que apontava 207 lideranças
defensoras dos direitos humanos ameaçadas
de morte no estado. Eles também estavam na
lista da CPT de ameaçados. Apesar disso,
não pediram nem recebiam proteção
oficial.
“A única segurança
deles eram os companheiros das organizações
e movimentos sociais, sindicatos e associações
que os apoiavam”, conta Célia Regina das
Neves, uma das diretoras do Conselho Nacional de
Populações Extrativistas (CNS). Célia
informa que, recentemente, os cachorros de Zé
Cláudio e Maria foram mortos a tiros no quintal
de casa e que circulavam boatos na região
de que o prêmio pela cabeça de Zé
Cláudio seria de R$ 5 mil.
“A mesma coisa que fizeram com
Chico Mendes e irmã Dorothy Stang querem
fazer comigo. Eu posso estar aqui falando com vocês
hoje e, daqui a um mês, vocês podem
ter a notícia de que eu desapareci”, alertou
Zé Cláudio em novembro passado, em
uma palestra promovida pela organização
TEDx, em Manaus (veja o vídeo). Ele disse
que tinha medo, mas que continuaria a denunciar
a derrubada da floresta na região de Marabá,
cerca de 480 quilômetros ao sul de Belém
(PA).
Em entrevista à Rádio
Eldorado (SP), também no ano passado, Zé
da Castanha, como era conhecido, contou que tinha
informações de que quem o ameaçava
dizia que sua mulher, igualmente uma militante socioambientalista,
deveria ser morta junto com ele.
Ontem, em Brasília, o presidente
em exercício Michel Temer reuniu o secretário
geral da Presidência, Gilberto Carvalho, o
ministro do Desenvolvimento Agrário, Afonso
Florence, e técnicos das pastas de Meio Ambiente,
Justiça e Direitos Humanos para traçar
estratégias de como conter a onda de violência
na Amazônia. Sem dar muitos detalhes, o governo
decidiu criar um grupo interministerial para acompanhar
a investigação dos assassinatos, disse
que pretende garantir a segurança de outras
lideranças ameaçadas e intensificará
ações de combate ao desmatamento e
regularização fundiária. A
Polícia Federal está investigando
os crimes.
O coordenador do Núcleo
de Direitos Humanos da Defensoria Pública
do Pará, Márcio da Silva Cruz, afirma
que Zé Cláudio e Maria não
recebiam proteção policial porque
nunca formalizaram um pedido para serem protegidos.
Ele explica que isso é necessário
para acionar uma equipe formada por policiais, defensores
públicos, psicólogos e assistentes
sociais que checa as ameaças e encaminha
um relatório ao Programa Estadual de Proteção
aos Defensores dos Direitos Humanos, financiado
e vinculado à Secretaria Especial de Direitos
Humanos da Presidência da República.
Depois disso, a coordenação do programa,
formada por órgãos do governo e sociedade
civil, avalia o pedido.
Cruz defende o trâmite.
“Você pode ser um grande militante dos direitos
humanos, mas ser ameaçado por dever a um
agiota e isso não ter nada a ver com a sua
militância”, afirma. Ele informa que há
hoje no Pará seis pessoas que recebem escolta
policial a pedido do programa. Dom Erwin Kräutler,
bispo da Prelazia do Xingu e presidente do Conselho
Indigenista Missionário (Cimi), é
um dos que recebem a proteção. Cruz
lembra que nenhuma dessas pessoas sofreu ameaça
ou algum tipo de atentado depois de entrar para
o programa. Mais 17 pedidos de proteção
aguardam avaliação. Cruz conta ainda
que o programa irá acompanhar a investigação
das mortes de Zé Cláudio e Maria para
aprimorar suas estratégias.
“Não é a vítima
que tem de fazer o pedido ao programa. É
o programa que tem de oferecer proteção
para as vítimas. Essa é uma inversão
do papel do Estado, uma justificativa do Estado
para se eximir da responsabilidade”, critica José
Batista Afonso, advogado da CPT em Marabá.
Ele avalia que o Poder Público não
pode alegar que desconhecia as ameaças a
Zé Cláudio e Maria por elas estarem
registradas numa pesquisa oficial, na lista da CPT
e publicadas na imprensa local e nacional. “O programa
está com as pernas quebradas. Ele só
existe no papel. Suas principais políticas
nunca foram efetivadas", comenta Afonso.
“Mais do que omissos, eles [o
governo estadual e a União] foram coniventes
com aqueles que praticaram o crime. Porque não
protegeram a área. O Incra [Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária]
não fiscalizou, não atendeu as dezenas
de denúncias feitas. Não conheço
processo que tenha sido aberto contra os madeireiros
pelo desmatamento ilegal”, argumenta. “O problema
é que isso não é prioridade
do governo: proteger seringueiros, sindicalistas,
ambientalistas”. Afonso reivindica uma ação
preventiva do governo para proteger os defensores
de direitos humanos ameaçados.
O procurador da República
no Pará Felício Pontes também
considera que o Estado não pode esperar pela
formalização de um pedido de proteção
para agir e que também houve omissão
no caso de Zé Cláudio e Maria. “Pra
mim, essas pessoas que estão sob ameaça
de morte estão extremamente vulneráveis
por uma omissão gravíssima do governo
federal, que assenta essas pessoas no meio de áreas
de conflito e vai embora”. Ele cobra uma ação
mais efetiva do Incra em conflitos como os do PAE
Praialta Piranheira.
Pontes defende que haja um tratamento
diferenciado no Judiciário para crimes como
os da semana passada. O procurador informa que,
em reunião realizada na semana passada, o
governador do Pará, Simão Jatene,
garantiu rever a situação dos ameaçados
de morte no sentido de assegurar uma proteção
mais efetiva.
Militantes ouvidos pela reportagem
do ISA confirmaram a desconfiança que existe
em relação à proteção
oferecida pelas polícias civil e militar
paraenses. Eles consideram que seria arriscado levar
para dentro de suas comunidades integrantes de uma
instituição que já foi acusada
ela própria de atentar contra os direitos
humanos. Ao mesmo tempo, várias lideranças
não aceitam manter escolta pessoal enquanto
seus vizinhos e colegas continuam vivendo um clima
de insegurança. A solução para
as ameaças e crimes seria garantir a presença
do Estado para resolver os conflitos fundiários,
coibir o desmatamento ilegal e a dar segurança
a comunidades inteiras.
“A questão é que
as causas das ameaças não são
combatidas”, defende Márcio Apolo Santana
Leão, presidente da Sociedade Paraense de
Defesa dos Direitos Humanos (SDDH). Ele considera
que a impunidade da grande maioria dos assassinos
de trabalhadores rurais continua sendo o maior estímulo
para novos crimes e ameaças. Leão
afirma que a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência
da República tinha conhecimento de que Zé
Cláudio e Maria do Espírito Santo
estavam sendo ameaçados desde 2008 porque
teve acesso ao levantamento realizado pela Defensoria
Pública do Pará.
+ Mais
O veto necessário
25/05/2011 - Numa noite anti-histórica,
a Câmara dos Deputados aprovou um conjunto
de emendas que destroem os principais pilares da
legislação florestal brasileira, para
desobrigar os proprietários de terra de qualquer
responsabilidade socioambiental efetiva. Trata-se
da pior proposta de política florestal já
formulada na história do Brasil.
Sob o pretexto de “consolidar”
áreas de produção agrícola,
ninguém mais estaria obrigado a manter áreas
com cobertura vegetal nativa em margens de rios,
encostas, topos de morros, veredas, dunas ou manguezais,
a não ser em situações específicas
em que órgãos ambientais estaduais
venham a exigir alguma proteção. Como
estes órgãos - via de regra - estão
sujeitos à pressão local de interesses
econômicos, somente em circunstâncias
catastróficas haveria “áreas de preservação
permanente” (APPs). Novas supressões de vegetação
nativa poderiam ser autorizadas, não somente
em situações excepcionais de interesse
público, mas também para o desenvolvimento
de atividades agrossilvipastoris, de turismo e outras
que órgãos locais viessem a estabelecer.
Da mesma forma, ao promoverem
o fracionamento artificial de suas propriedades,
nem mesmo os grandes proprietários estariam
obrigados a recuperar áreas de reserva legal
que tenham sido ilegalmente desmatadas no passado.
Somente aqueles que cumpriram a legislação
vigente e mantiveram as suas reservas legais estariam
obrigados a manter áreas com cobertura florestal
em suas propriedades e acabariam punidos pela anistia
indiscriminada concedida aos desmatadores.
Com os olhos postos nos votos
provenientes de regiões rurais e nos financiamentos
de campanha providos por fazendeiros, 273 deputados
constituíram uma maioria oportunista e impuseram
a primeira derrota ao governo Dilma no poder legislativo,
desconsiderando a vontade majoritária da
população, o nosso patrimônio
natural coletivo, os riscos de tragédias
climáticas e os compromissos internacionais
do país.
Em primeira instância, o
Senado pode e deve rever a decisão da Câmara
e formular outra proposta de atualização
do Código Florestal. Para isto, poderá
dispor de um grande número de sugestões
que foram apresentadas pela comunidade científica,
pelo setor florestal, pelos movimentos ligados à
agricultura familiar, por autoridades e organizações
ambientais, mas que foram ignoradas e desprezadas
pela maioria dos deputados federais. Porém,
as alterações que vierem a ser aprovadas
pelo Senado voltarão a ser submetidas à
Câmara dos Deputados, de modo que, a não
ser que pelo menos 50 deputados venham a mudar suas
posições, poderão acabar rejeitadas,
prevalecendo a proposta reacionária e predatória
que foi agora aprovada.
Significa dizer que, provavelmente,
caberá à presidente Dilma a responsabilidade
de restabelecer a legislação brasileira
de proteção às florestas através
do instituto do veto presidencial. O veto presidencial
só poderia ser derrubado pela decisão
de uma maioria absoluta dos congressistas (deputados
+ senadores), não havendo precedente neste
sentido.
Assim, é hora de todos
os cidadãos e cidadãs, personalidades,
intelectuais, atores econômicos e movimentos
sociais com responsabilidade e compromisso socioambientais
se manifestarem em favor do veto, de modo a retirar
a presidente do isolamento político em que
a maioria dos deputados pretendeu confiná-la.
O que está em jogo é
a qualidade de vida das gerações futuras
e a condição do Brasil enquanto potencia
ambiental planetária. A hora de agir é
agora!