20/05/2025
– Animais marinhos estão ingerindo
microplásticos nas profundezas da Antártida
há pelo menos quatro décadas, segundo
um estudo liderado por cientistas do Instituto Oceanográfico
(IO) da USP. Os pesquisadores investigaram o conteúdo
gastrointestinal de mais de uma centena de organismos
coletados de águas profundas do Oceano Austral
entre 1986 e 2016, e encontraram microdetritos em
quase um terço deles — incluindo fibras
de diversos materiais plásticos, como poliamida,
poliéster e polietileno.
Um dos achados do
estudo é o registro mais antigo da presença
de microplásticos no ambiente antártico:
uma fibra azul de pouco mais de 2 milímetros,
encontrada nas vísceras de um misidáceo
(um crustáceo pequeno, parecido com um camarão),
coletado em fevereiro de 1986, ao largo da Península
Antártica. O fragmento era feito de polisulfona,
um polímero plástico resistente a
altas temperaturas e muito usado em revestimento
de fiações elétricas e de encanamentos,
o que levanta a hipótese de que ele seja
oriundo de materiais usados na construção
das várias estações de pesquisa
que existem na região.
O trabalho, publicado
em 20 de novembro na revista científica Environmental
Science & Technology, reforça uma percepção
já bem caracterizada por outros estudos,
de que a Antártida, apesar da baixa ocupação
e da distância que a separa dos grandes centros
urbanos do mundo, não está imune à
poluição humana — nem mesmo
no fundo do mar. “A ocorrência de fibras
na margem continental mais remota do mundo renova
as preocupações com a poluição
em regiões aparentemente isoladas”,
escrevem os pesquisadores.
“A gente sempre
esperou que fosse encontrar microplásticos,
só não sabia quanto”, contou
ao Jornal da USP o biólogo Gabriel Stefanelli
Silva, que realizou a pesquisa como parte de seu
doutorado no IO, sob orientação do
professor Paulo Sumida do Laboratório de
Ecologia e Evolução de Mar Profundo
(Lamp). As concentrações detectadas
são equivalentes às encontradas por
outros estudos em organismos do Ártico e
de outras regiões com densidade populacional
muito maior. “É uma preocupação
muito grande porque a gente esperava que a Antártida
fosse um ambiente um pouco mais livre desse tipo
de contaminação, mas não é”,
destacou Silva.
Reprodução/Marcos
Santos/USP Imagens
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Os pesquisadores
analisaram o conteúdo estomacal e/ou intestinal
de 169 organismos bentônicos (que vivem fixados
ou associados ao substrato marinho) de 15 espécies,
incluindo pepinos-do-mar, estrelas-do-mar, ofiuroides
(popularmente conhecidos como serpentes-do-mar,
apesar de não serem serpentes), poliquetas
(vermes) e camarões. Vários procedimentos
de segurança foram adotados para evitar a
contaminação das amostras com microplásticos
do ambiente externo — por exemplo, da roupa
dos pesquisadores, dos instrumentos de pesquisa
ou do próprio ar do laboratório, já
que os microplásticos estão por toda
parte. No final das contas, 53 dos 169 animais continham
detritos dentro deles, totalizando 85 microfibras
(fragmentos de fibras com menos de 5 milímetros
de comprimento).
Essas fibras podem
ser feitas de materiais orgânicos (algodão,
seda ou lã), sintéticos (plásticos)
ou semissintéticos (celulose). Fazer a caracterização
precisa desse material é complicado. Apenas
sete dos 85 fragmentos foram identificados como
sintéticos por meio de técnicas de
espectroscopia, que permitem investigar as características
moleculares de um objeto; mas isso não significa
que não haja mais plásticos entre
as outras 78 amostras. “O equipamento tem
limitações e não foi possível
caracterizar todos os polímeros, principalmente
em função do formato das fibras”,
explicou Silva. “Mas é totalmente possível
que haja mais plásticos nas amostras. O que
apresentamos no trabalho é uma estimativa
bem conservadora.”
Um dos principais
objetivos científicos da pesquisa era determinar
como os diferentes métodos de alimentação
influenciam a ingestão de microdetritos por
animais bentônicos na Antártida. Os
organismos com maior quantidade de fibras presentes
foram os pepinos-do-mar e os ofiuroides, que podem
capturar partículas de alimento tanto do
sedimento quanto da água. Os pesquisadores
levantam a possibilidade de que esses organismos
possam ser usados como “sentinelas”
da presença de microdetritos em ambientes
de mar profundo da Antártida, assim como
já é feito com mexilhões e
outros moluscos filtradores para monitorar essa
contaminação em águas rasas
de regiões tropicais, por exemplo.
Outros estudos já
encontraram fibras no sistema digestório
de vários outros animais da Antártida
como pinguins, focas, peixes e moluscos, mas as
espécies bentônicas seriam as melhores
indicadoras da presença e da quantidade desses
microdetritos no sedimento marinho.
Poluição
plástica onipresente
A poluição plástica é
classificada pela Organização das
Nações Unidas como um dos maiores
problemas ambientais do planeta atualmente. Todos
os objetos de plástico se decompõem
fisicamente com o tempo, quebrando-se em fragmentos
cada vez menores, que são chamados de microplásticos
(quando têm menos de 5 milímetros)
e nanoplásticos (quando se tornam microscópicos).
Esses detritos plásticos — grandes
ou pequenos — não são biodegradáveis
e permanecem por séculos no ambiente, podendo
liberar substâncias tóxicas, contaminar
alimentos e ser ingeridos por animais, incluindo
seres humanos. Microplásticos já foram
encontrados em vários tecidos humanos, como
sangue, placenta e cérebro (bulbo olfativo).
As fibras sintéticas são uma das formas
mais comuns de microplástico. Elas são
geradas, principalmente, nos processos de lavagem
e degradação de tecidos sintéticos,
como roupas de poliéster e poliamida —
que são os polímeros mais comuns na
Antártida.
Não há
como saber exatamente de onde vieram os fragmentos
encontrados no trato intestinal dos animais: se
saíram da estação de pesquisa
mais próxima ou viajaram milhares de quilômetros
desde algum ponto distante do planeta, carregados
por correntes oceânicas ou pelo vento. “É
provável que estejam vindo tanto de atividades
de turismo quanto de pesquisa na própria
Antártida, porque muitas das bases não
têm um sistema próprio para tratamento
de efluentes”, avalia Silva. “Essa é
uma das origens possíveis, mas há
trabalhos recentes que mostram que essas fibras
podem ser carregadas por milhares de quilômetros
na atmosfera.”
A baixa temperatura e alta densidade das águas
ao redor da Antártida criam uma espécie
de barreira oceanográfica conhecida como
Convergência Antártica, ou Frente Polar
Antártica, que dificulta a entrada de organismos
e detritos flutuantes de outras áreas do
oceano, mas parece não ser muito efetiva
contra os microdetritos (incluindo microplásticos)
– que podem passar tanto por cima quanto por
debaixo dessa barreira.
Considerando que a
construção de estações
de pesquisa na Antártida — e a produção
global de plásticos — se intensificou
a partir da década de 1950, é provável
que a contaminação do ambiente e da
biodiversidade por microplásticos na região
tenha começado bem antes de 1986, segundo
os pesquisadores. A Estação Antártica
Comandante Ferraz (EACF) do Brasil, que fica na
Ilha do Rei George, ao largo da Península
Antártica (dentro da área abrangida
pela pesquisa), foi inaugurada em 1984. A base possui
sistemas para reuso de água e tratamento
de esgoto convencional, mas não existem tecnologias
estabelecidas, ainda, para a filtragem de microplásticos
e outros microdetritos.
Atualmente, há
mais de 70 estações de pesquisa na
Antártica, mantidas por mais de 50 países.
A ocupação total varia entre 1 mil
pessoas no inverno e 5 mil pessoas no verão.
Apenas metade dessas estações, aproximadamente,
possuem tratamento de esgoto, segundo um estudo
publicado em setembro deste ano por pesquisadores
argentinos na revista Marine Pollution Bulletin.
“Como profissionais
que têm a sorte de trabalhar no campo da investigação
polar, devemos humildemente considerar como a nossa
própria pegada ecológica impacta o
ecossistema antártico”, escrevem os
pesquisadores brasileiros no estudo da Environmental
Science & Technology.
A importância
das coleções
Todos os organismos analisados no estudo foram coletados
abaixo de 200 metros de profundidade (que é
a definição técnica de “mar
profundo”), no decorrer de oito expedições
realizadas entre 1986 e 2016 nos arredores da Península
Antártica; todas foram financiadas pelo programa
de pesquisa antártica do Brasil (Proantar)
e dos Estados Unidos (Usap).
A pesquisa só pôde ser realizada porque
esses organismos foram preservados em coleções
biológicas, mantidas por instituições
acadêmicas, incumbidas de resguardar não
só a integridade física dos espécimes,
mas também as informações científicas
associadas à ocorrência deles na natureza.
Os espécimes coletados nas expedições
americanas estão guardados na coleção
de ciências marinhas da Universidade do Havaí,
em Manoa, enquanto que os espécimes brasileiros
fazem parte da Coleção Biológica
Prof. Edmundo F. Nonato do Instituto Oceanográfico
da USP (ColBIO).
Os pesquisadores destacam
a importância dessas coleções
e chamam atenção para a falta de recursos
humanos e financeiros que muitas delas enfrentam
atualmente. “Uma tendência preocupante
é que, enquanto as publicações
que usam coleções biológicas
para ajudar a elucidar tendências temporais
têm aumentado nas últimas três
décadas, o suporte para a manutenção
de tais coleções está enfrentando
financiamento decrescente. Portanto, nosso conjunto
de dados, além de constituir um testemunho
da ampla escala de impactos antropogênicos
em ecossistemas remotos, também demonstra
o valor de arquivar e documentar amostras biológicas
para a posteridade”, escrevem os cientistas,
na conclusão do trabalho.
A ColBIO foi inaugurada
em 2012 e preserva dezenas de milhares de organismos
marinhos, coletados em centenas de expedições
científicas realizadas por pesquisadores
brasileiros ao longo das últimas seis décadas
— incluindo todas as expedições
do Proantar, que completou 40 anos em 2024.
“É uma
responsabilidade muito grande você pensar
em todos os esforços que diversas pessoas
empreenderam para construir esse acervo e permitir
que eu tivesse acesso a esse tipo de material, sem
nem precisar ir até a Antártida”,
pondera Silva — que nunca esteve no continente
gelado. “Essas coleções têm
um valor enorme e é muito importante reconhecer
o esforço das pessoas que fazem a coleta
e a curadoria desse material.” A curadora
da ColBIO é a pesquisadora Mônica Petti,
do IO-USP.
Além de Silva
e Sumida, assinam o trabalho na Environmental Science
& Technology outros seis pesquisadores vinculados
ao Instituto de Química (IQ) da USP, ao Instituto
de Biociências (IB) da USP, ao Instituto de
Biologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro
e ao Departamento de Oceanografia da Universidade
do Havaí em Manoa.
O artigo Bottom-Feeders
Eat Their Fiber: Ingestion of Anthropogenic Microdebris
by Antarctic Deep-Sea Invertebrates Depends on Feeding
Ecology.
Mais informações: Gabriel Stefanelli
Silva, gabrielstefanelli@hotmail.com; e Paulo Sumida,
psumida@usp.br
Do Jornal da
USP
Fotos: Reprodução/Marcos Santos/USP
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